A Feira do Livro, Literatura brasileira,

O puxador de angústias

Otto Lara Resende, cujo centenário de nascimento é celebrado neste ano, causou um impacto inigualável como colunista da “Folha”

25maio2022

Otto Lara Resende era tão vário que, ao vivo, valia pela obra completa de muitos. Não se erra ao tê-lo, a exemplo de Nelson Rodrigues, como um dos nossos maiores conversadores, essa qualidade tão civilizatória — e nos resta especular quanto sua arte de conversação seria útil nesses tempos de tanta rispidez, ele que dizia operar na faixa da delicadeza. É uma pena que a humanidade não tenha inventado algo possível de registrar os diálogos dele com ele mesmo — talvez tenham sido as mais interessantes de suas conversas sempre interessantes. Como era uma pessoa ungida pela angústia, é de imaginar que o interlocutor mais agudo do Otto externo fosse o próprio Otto interno.

O poço de contradições que ele dizia ser — “Há muita coisa verdadeira para mim que digo para ser contestada, para me convencerem do contrário, do que já estou convencido” — aparece exemplarmente no texto “Quem é Otto Lara Resende?”, encontrado na antologia O príncipe e o sabiá (Companhia das Letras). Ele, que se recusava a escrever as memórias, embora fosse um leitor interessadíssimo nas memórias dos outros, fez da resposta a uma pergunta do amigo Paulo Mendes Campos uma curiosa exposição simultânea de seu autorretrato juntamente com o negativo desse autorretrato. Quando pensamos nesse vai e volta de sua personalidade (um falante que gostava do silêncio, um solitário que adorava ter gente ao redor, um imóvel semovente, e por aí vai), temos a liberdade para achar que o palíndromo — figura de linguagem que o intrigava bastantemente — de seu prenome não seja apenas uma coincidência, mas algo mais revelador do que isso.

Tive uma pequena convivência com essa angústia ottolararresendiana — que podia passar da melancolia para a piada num átimo — durante a crise que levou à renúncia e ao impeachment de Collor, em 1992. Otto e eu trabalhávamos na Folha de S. Paulo e ele me ligava, do Rio, no final da tarde, para saber das últimas. Nessas chamadas, a voz não era a do frasista ou a do conversador que marca, junto com a figura do missivista insaciável, sua imagem para a posteridade. Era a voz de um homem atormentado, bastante perplexo — ele, um veterano de tantas crises institucionais — com os fatos que chacoalhavam a República, genuinamente preocupado com o que aconteceria com o país. Sua angústia vinha de dentro e contrastava com a frieza e quase naturalidade com as quais a redação de um jornal pode tratar os momentos mais tensos de instabilidades políticas. Arrisco-me a dizer que, de certa maneira, a escrita do último Otto — frases curtas, pensamentos rápidos, imagens contrastantes — são frutos dessa alma irrequieta, que dorme pouco, que ousa e logo depois se encolhe. Numa das histórias mais interessantes da vida literária brasileira do século 20, ele e seus amigos do tempo de rapaz em Belo Horizonte, na década de 40, se encontravam para “puxar angústia”, uma expressão notável em vários sentidos.

Um Otto solto, solar, múltiplo, dando vazão às suas pequenas obsessões, emergiu na ‘Folha’

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Na sexta-feira 23 de março de 1990, poucos dias após a posse de Collor na Presidência da República, a Polícia Federal invadiu a sede da Folha de S. Paulo, naquela que seria a primeira tentativa de cercear um órgão de imprensa desde o fim, havia pouco tempo, da ditatura cívico-militar. Meses depois da invasão, Collor colou uma espada de Dâmocles sobre a cabeça do diretor de redação do jornal, Otavio Frias Filho, processando o jornal. Herança do período autoritário, todo diretor de redação era responsabilizado pelas matérias publicadas no veículo que dirigia, mesmo que não tivesse lido ou editado o texto, e, em caso de uma eventual segunda condenação, passava a cumprir pena de prisão (no caso de OFF, como o diretor da Folha também era chamado internamente, ele estava viajando quando as notas que provocaram a ira de Collor foram publicadas). O processo foi longo e inevitavelmente criou uma tensão interna para quem trabalhava no jornal — que nesse momento mostrou a coragem digna dos grandes momentos da história da imprensa. Os cuidados de checagem de informações relativas ao governo federal precisaram ser redobrados, mas nenhum fato relevante sobre o que se passava no Planalto deixou de ser publicado. E como Collor assumiu com apoio amplo do empresariado — muitos deles anunciantes do jornal — e de setores da sociedade civil, a pressão sobre o jornal era grande e não faltavam, entre jornalistas e jornais, os que apoiavam o governo, mesmo que não explicitamente. Nos primeiros dias, parecia que a Folha estava isolada, contando apenas com o apoio inestimável de seus leitores e de grupos democráticos minoritários.

A tradicional coluna “Rio de Janeiro”, na página 2, era ocupada desde 1976 — período em que o jornal, dirigido então por Cláudio Abramo, começava a fazer as mudanças que ganhariam peso na década seguinte — pelo respeitado jornalista Newton Rodrigues. Ele tinha uma trajetória de destaque na imprensa carioca: inicialmente ligado ao Partido Comunista, dirigiu a importante revista Senhor e foi redator-chefe do Correio da Manhã. Apesar de ele se colocar no centro esquerdo no espectro político, as colunas de Newton Rodrigues não eram críticas ao governo Collor. Isso causava certo constrangimento entre os jornalistas que sentiam seu trabalho ameaçado pelo presidente, mas, até aí, era jogo jogado, liberdade de expressão.

A situação ficaria insustentável quando Newton Rodrigues atendeu a um chamado de Fernando Collor de Mello e foi se encontrar com ele sem avisar previamente a direção do jornal. A atmosfera dentro da Folha era de uma guerra pela sobrevivência de seu projeto de jornalismo independente, e a notícia do encontro entre o presidente e o colunista foi recebida como se um militar de patente fosse se encontrar, às escondidas, com o general do Exército inimigo. As colunas da página 2 estavam no espaço mais importante do jornal depois da capa, ao lado dos editoriais. Os colunistas daquela página tinham liberdade para se expressar, mas não para fazer movimentos de quebra de confiança. A direção do jornal, com apoio tácito de quase todo o corpo de jornalistas, entendeu que a situação de Newton Rodrigues, que além de tudo tinha uma posição no conselho editorial da Folha, ficava insustentável a partir do encontro no Palácio do Planalto — e pediu o espaço de volta.

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No nono andar do edifício de pastilhas coloridas na alameda Barão de Limeira, sede da Folha, havia uma reunião diária às 14h30. Nela, Otavio Frias Filho se encontrava com o editor executivo, os secretários de redação, os editores da Folha da Tarde e do Notícias Populares, os outros jornais do grupo Folha, e a diretora do Banco de Dados. O publisher Octávio Frias de Oliveira participava dessa reunião em ocasiões especiais. Um dos temas que se discutiam nesses encontros era a eventual contratação de novos colunistas para a Folha. Com a saída de Newton Rodrigues, estava vago um dos espaços mais importantes do jornal. Na escolha do novo colunista, havia um aspecto importante a ser considerado. Grande parte da construção do prestígio nacional do jornal da família Frias se dera por meio da atração de jornalistas históricos da imprensa carioca, casos de Samuel Wainer, Janio de Freitas, Alberto Dines, Luiz Alberto Bahia, Paulo Francis e do próprio Newton Rodrigues, entre outros. Achar um nome de impacto para a coluna “Rio de Janeiro”, com o jornal sob pressão, não seria tarefa fácil.

Em meio a cinco ou seis nomes sugeridos nas reuniões do outono de 1991, emergiu o de Otto Lara Resende — talvez, naquele momento, o mais distante, entre os possíveis colunistas, do público paulista. Mas a ideia de ter Otto na Folha agradou imensamente aos Frias, pai e filho, que, no entanto, viam um grande obstáculo: Otto fora diretor da rede Globo, era colunista de O Globo desde 1977 e tinha um histórico de proximidade com Roberto Marinho. Seria possível ele trocar O Globo pela Folha? E mais: seria possível ele deixar de falar para o Rio de Janeiro, onde se encontravam seus maiores amigos e onde militou intelectualmente quase a vida toda, para se arriscar a escrever, em um formato de coluna totalmente diferente daquelas que estava acostumado a fazer no jb e no Globo, para o (na sua imensa maioria) público paulista?

Havia uma pessoa na Folha que poderia ajudar a encontrar as respostas a essas questões: Janio de Freitas. Um dos mais importantes jornalistas políticos da história da imprensa brasileira — independente e crítico severo da própria Folha, onde, com um estilo elegante de frases bem pensadas que obrigam o leitor a pensar, escrevia desde o início da década de 80 —, era amigo de Otto. Octavio Frias pediu então a Janio que sondasse o possível novo colunista, e sua abordagem inicial foi decisiva para atrair o “pobre menino do Matola, de São João del Rei” para a tribuna paulista — tempos depois, em 1993, com a morte repentina de Otto no final do ano anterior, Janio seria fundamental também no convite a Carlos Heitor Cony para assumir a coluna “Rio de Janeiro”.

Coube ao editor executivo do jornal a “missão”, como dizíamos (havia muito de espírito militar, de quem está participando de uma organização revolucionária, nas atitudes dos jovens, muitos deles saídos do movimento estudantil dos anos 70, que trabalhavam na Folha daquele tempo), de fazer o convite oficial a Otto. Data combinada, no dia anterior à minha ida ao Rio, OFF me disse: “Prepare-se para a missão mais agradável da sua vida”. Ele contou que encontrara Otto uma única vez, em um fim de semana na fazenda do então senador Severo Gomes, no vale do Paraíba, e ficara profundamente impressionado com sua personalidade e com sua conversa.

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Para o nosso primeiro encontro, Otto escolheu um restaurante no bairro do Jardim Botânico, no Rio (aliás, perto da sede da rede Globo). Sentamo-nos à mesa por volta das 12h30. Ali pelas 14h, Regina Casé entrou com amigos no restaurante e foi alegremente saudada por Otto. Por volta das 17h, a hora do poema de García Lorca, eu já havia perdido meu voo de volta da ponte aérea e ainda não havia conseguido fazer o convite formal para ele escrever na Folha. Só Otto falara e eu não tive coragem de interromper o fluxo do extraordinário contador de histórias (que passavam pela cobertura da Constituinte de 1946, por excentricidades de Jânio Quadros, por casos das redações dos grandes jornais cariocas, pela menção a San Tiago Dantas como o homem mais brilhante dos que conhecera na política brasileira). Saí otimista daquela tarde memorável, mas Otto, como o grande mineiro que foi, não havia dito nem sim nem não à proposta que lhe fiz. No dia seguinte, ele me ligou e perguntou: “Ontem, nós não falamos sobre um ponto importante. Aquela proposta que você me fez exige exclusividade?”. Do meu lado, vacilei. Era claro que queríamos ter Otto apenas para os leitores da Folha, mas se ele tivesse constrangimento em deixar o Globo, eu me perguntava se valeria a pena ter uma alternativa b em que colaborasse com os dois jornais. Como eu me demorava para responder, Otto quebrou o silêncio e resolveu o problema dizendo: “Pois eu gostaria muito que exigisse”.

A reação agressiva ao seu livro de contos certamente amputou alguns de seus dedos de autor literário

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Uma das histórias mais marcantes que Otto Lara Resende me contou de suas passagens pela imprensa carioca diz respeito à concorrência entre aqueles que se firmariam como os dois principais veículos cariocas a partir dos anos 60. Como vocação de jornal vespertino, O Globo não circulava aos domingos, dia em que o Jornal do Brasil reinava soberano. A edição dominical era responsável pela maior fatia de receita publicitária dos jornais graças aos anúncios classificados, segmento no qual o jb era líder absoluto (foi o jornal que teve como política dar os classificados na capa, disputando espaço com as notícias mais importantes, então os anúncios classificados estavam em seu dna). Por outro lado, seguindo a tradição dos grandes jornais matutinos, como o Estado de S. Paulo na capital paulista, o Jornal do Brasil não circulava às segundas-feiras até que, no início da década de 70, sua direção decidiu publicar o jornal também no primeiro dia útil da semana. Era a oportunidade que O Globo estava esperando para disputar o dia nobre dos jornais. Contra-atacou lançando sua edição dominical, apoiada por uma campanha forte, aos sábados, na TV Globo, que se firmara como líder de audiência, anunciando a edição do dia seguinte. A carga de veiculação era tão forte que o bordão “Leia amanhã em O Globo” grudou na cabeça dos cariocas.

Não tardou para o Jornal do Brasil perceber o poder destruidor que seu movimento causara para o próprio negócio. Manoel Francisco do Nascimento Silva, o publisher do JB, de quem Otto permanecera amigo mesmo depois de ter se tornado um dos mais importantes colaboradores de Roberto Marinho, chamou-o para uma conversa na qual pediu para que ele falasse com o dono da Globo para voltarem à situação anterior: o JB não sairia mais às segundas e o Globo interromperia suas publicações dominicais. Otto foi à casa do Cosme Velho, residência do “doutor” Roberto, como era chamado, para transmitir o pedido de Nascimento Brito. Caminhando pelos famosos jardins, ao lado do lago com flamingos, Marinho ouviu atentamente as ponderações transmitidas pelo amigo comum. De repente, parou, virou-se para o Otto e perguntou: “Otto, você já ouviu falar do cavalo de corrida que está tão desesperado para passar à frente dos outros que chega a morder a traseira do cavalo que está a sua frente?”. Otto respondeu que sim. “Pois bem, esse cavalo sou eu.”

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Poucas estreias de um jornalista em um órgão da imprensa brasileira tiveram o impacto da de Otto Lara Resende na Folha de S. Paulo. Sua primeira coluna, com o título de “Bom dia para nascer”, aludindo ao 1º de Maio do seu nascimento — cujo centenário é comemorado neste 2022 —, virou um marco e dá título a uma substanciosa antologia das crônicas da coluna “Rio de Janeiro” organizada por Humberto Werneck e publicada pela Companhia das Letras. No formato conciso da coluna, o estilo telegráfico de Otto se encaixou perfeitamente, criando uma dinâmica irresistível. Um Otto solto, solar, múltiplo, observador do cotidiano, dando vazão às suas pequenas obsessões, emergiu do rodapé da página 2 da Folha. Não foram poucos os amigos que saudaram suas colunas como um resurgimento do Otto com todo o seu poder encantatório com as palavras.

Ele fez também colaborações para outras seções, incluindo uma regular, com perfis, para o efêmero e divertido suplemento dominical Folha D (foi nesse suplemento que Bussunda teve o seu momento de frasista no melhor estilo ottolararresendiano. Havia uma pequena seção no suplemento que perguntava “Qual o lugar mais estranho em que você fez amor?”. A resposta de Bussunda tornou-se um clássico do humor da rivalidade entre cariocas e paulistas: “São Paulo”). Otto passou a integrar o Conselho Editorial da Folha, que se reunia de quando em quando para almoçar e conversar sobre os caminhos do jornal. Um dos momentos mais interessantes desses encontros eram as análises da conjuntura política (e do jornal nessa conjuntura) feitas por Luiz Alberto Bahia. Mas os almoços de que Otto participava eram sempre um acontecimento especial que podia ser medido pelo tempo que duravam: começavam às 13h e não terminavam antes das 16h, quando todos descíamos apressados para a redação, no quarto andar, a tempo de começar a fechar a edição do dia seguinte.

Para enviar suas colunas diárias, a pedido da Folha, Otto passou a usar um instrumento que foi tão revolucionário quanto breve: o fax. Uma vez, ficou realmente chateado com o jornal: o editor de suas colunas enquadrou na norma culta uma colocação pronominal e ele perdeu as estribeiras. E uma polêmica, em pleno verão de 1992, deixou-o visivelmente irritado: escreveu que Dalton Trevisan e ele colecionavam provas de que Capitu traiu Bentinho. Alguns leitores e o tradutor e professor de letras clássicas da Universidade de São Paulo (USP) Antonio Medina Rodrigues contestaram. Medina usou um tom agressivo e Otto, que se considerava um construtor de pontes, um conciliador, lamentou ter iniciado a polêmica sobre a maior charada da literatura brasileira.

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Há muitas teorias sobre o porquê de Otto Lara Resende ter encerrado muito cedo a sua carreira de escritor, tornando-se um reescritor (fez cinco versões de O braço direito, o seu “romancinho”, que, sem a intervenção de Ana Miranda, talvez não tivesse sido republicado). A reação negativa e agressiva ao livro de contos Boca do inferno, na década de 50, certamente amputou alguns de seus dedos de autor literário. Mas é possível pensar que o papel de puxador de angústia, a consciência moral em permanente estado de contrição, também tenha contribuído para sua paralisia literária. “Literatura, esqueci. Parei tudo, estou distraído de mim e de Deus. Às vezes, penso com angústia em tudo isso, mas não vou puxá-la (a angústia) agora”, escreveu de Bruxelas a Fernando Sabino, em maio de 1958.

Essa escassez de produção literária originou, no final da vida, mais uma daquelas frases com a sua marca que julgo ser de interesse reproduzir nas páginas de uma publicação dedicada a livros como esta. Estávamos em Poços de Caldas para a inauguração da sede do Instituto Moreira Salles na cidade mineira, e Otto contava histórias divertidas da Editora do Autor (empreendimento dos amigos Fernando Sabino e Rubem Braga). Uma delas era mais ou menos assim: em 1961, o trio Hélio Pellegrino, Paulo Mendes Campos e Otto ia à editora dos amigos. Um deles colocava as mãos em concha à frente da boca e anunciava solenemente, como o compère em bailes da realeza que cantava os nomes dos convidados que chegavam: “A barca dos homens!”. E o trio respondia em coro: “Vai afundar! Vai afundar! Vai afundar!”, naquele humor infantil que os camaradas mineiros preservaram vida afora, agora tomando o romance de outro fraterno, Autran Dourado, que estava prestes a ser lançado pela Editora do Autor, como mote da brincadeira. A dada altura da conversa em Poços, Otto Lara Resende me perguntou: “Sabe por que sou amigo de todos os editores?”. Respondi que não. “Porque eu nunca os ameaço com um livro.”

Quem escreveu esse texto

Matinas Suzuki Jr.

É jornalista e escritor