Literatura brasileira,

Língua de fogo

Além da escrita, Carolina Maria de Jesus ficou conhecida por dizer o que pensava sobre tudo e todos, incluindo JK, Jango e Jorge Amado

01ago2021

No dia 29 de dezembro de 1960, Carolina Maria de Jesus voltava à favela do Canindé, de onde havia se mudado no final de agosto, depois do estrondoso sucesso de Quarto de despejo. A visita da escritora mineira, radicada em São Paulo desde 1937, visava uma situação inusitada: foi voluntariamente dar “conselhos” para o senhor Geraldo Bordin, gari ganhador de um prêmio milionário na loteria de Natal. Ele morava com a mulher em um barraco na favela onde por doze anos Carolina viveu e escreveu seu famoso livro. “Tenho ouvido muito a seu respeito. Não a conhecia pessoalmente, mas por ouvir falar”, disse o sortudo, que ainda não sabia o que fazer com a dinheirama, como disse ao jornal que cobriu o encontro regado a cafezinho e muita conversa. Carolina, então ex-favelada, disse para o lixeiro deixar imediatamente a favela, alegando que era “um inferno”: “Saiam daqui logo. Isto não é lugar para gente morar”.

O episódio é pouco conhecido do grande público. Pouco se conhece também de sua militância política, sobretudo no campo do que hoje chamaríamos de ativismo de esquerda com certo teor de socialismo. Ingênua ou atirada, levando pouco desaforo para casa, Carolina protagonizou, antes e depois da fama, cenas dignas de quem cutuca o leão com vara curta. A partir da fome, que ela dizia ser amarela, Carolina decantou sua revolta.

Em 21 de maio de 1958, um mês depois de ser descoberta e revelada por Audálio Dantas, criticava em seu diário os políticos que a cada quatro anos assumem o poder sem solucionar o problema da fome, que “tem matriz na favela e as sucursais nos lares dos operários”. Certa vez, em 1957, por se achar doente, expôs sua indignação contra o “propalado” atendimento do Serviço Social e ganhou voz de prisão. “Como é pungente ver os dramas que ali se desenrolam”, escreveu em Quarto de despejo. O funcionário Alcides, irritado com sua ousadia, teria gritado para os seguranças que a prendessem.

A partir da fome, que ela dizia ser amarela, Carolina decantou sua revolta

Carolina foi presa pelo menos quatro vezes, por queixas banais e fúteis — estar lendo ou escrevendo poesias na rua — e falsas acusações de roubo ou desacato. Ficou conhecida, como ela mesma narrou, como a “diaba de Sacramento”, por uma falsa denúncia de que estaria lendo o livro do bruxo São Cipriano, e, no tempo em que morou no Canindé, como “língua de fogo”, por dizer o que pensava contra tudo e todos. “Língua de mulher é igual pé de galinha, tudo espalha”, escreveu.

De 1960 em diante, Carolina não teve sossego. Seu livro virou best-seller imediato, desbancando nomes como Jorge Amado e Jean-Paul Sartre, e provocou uma revolução de vendas no Brasil e no mundo — até John Kennedy o leu. Com a ascensão social e a visibilidade, anúncios de casamentos e de gravidez, processos, brigas e outras turbulências tomaram conta de sua vida pública. Sua vida mudou radicalmente, passando a ser marcada por entrevistas diárias, viagens e idas a costureiros, salões de beleza e eventos literários, sociais e políticos. Passou de “negra favelada” a “Cinderela negra”, transmutando-se de controvertida e enigmática a uma das mulheres mais populares de seu tempo.

Ao vender 15 mil livros na Tchecoslováquia, declarou: “Agora quero me vestir em costureiros grã-finos como aquele tal de Dior”. Disse também que desejava estar na lista das dez mais. “Se a mulher do Garrincha [Elza Soares] entrou na lista, eu também posso.” Foi vista, no entanto, de “chale amarelo-berrante e enorme rosa vermelha”. Décio Pignatari, que a viu na rua, se impressionou com Carolina e “seu vestido soirée cor de maravilha até as canelas”. Mas era simpática, segundo ele. No festival 2ª Noite de Autógrafos, com a participação de Jorge Amado e Vinicius de Moraes, “atendeu a todas as perguntas curiosas que lhe fizeram”, como deu um jornal.

A mais requisitada

Sob forte holofote, Carolina atraiu ricos, pobres, príncipes, empresários, artistas, gente de bem e oportunistas travestidos de bons moços. Em pouco tempo, passou a ser a atração mais requisitada em passeatas reivindicatórias, fossem de policiais militares, fossem de protestos cívicos, como a do assassinato do líder congolês Patrice Lumumba. Na sucessão de Adhemar de Barros, a imprensa informava que candidatos pensavam em ter Carolina como vice, por conhecer bem “os aspectos negativos da vida em São Paulo”, o que a transformaria em uma “assessora inestimável para qualquer prefeito”. Um gaiato sugeriu a Jânio que lhe desse uma embaixada. “Vou botar relógio de ponto na Câmara se me elegerem deputado”, disse ela.

Com acesso a gabinetes, cruzou caminhos com Carvalho Pinto, Leonel Brizola, Carlos Lacerda, JK, Jânio Quadros e João Goulart, o Jango — além das primeiras-damas Neuza Brizola e Thereza Goulart. Múltipla como escritora, cantora, atriz, artista de circo, artista plástica, cronista e jornalista, a mineira era tinhosa até a medula. Tinha hora em que dizia: “Quando estou com fome quero matar o Jânio, enforcar o Adhemar e queimar o Juscelino”. Um versinho escrito em seu diário, inspirado no aumento das passagens, também ficou conhecido: “Juscelino esfola!/ Jânio mata!/ Adhemar rouba!/ A Câmara apoia!/ E o povo paga!”.

Ficou famoso também seu embate com Carlos Lacerda. De passagem por São Paulo, o governador convocou uma entrevista coletiva na casa do deputado Abreu Sodré, que o hospedava. Engasgada com denúncias de chacina de mendigos, jogados no rio da Guarda, Carolina pôs-se em campo. Recebida por seguranças e jornalistas, desatou a acusar Lacerda de “mata-mendigos”, “corvo”, “monstro”. “Eu ouvia dizer que ele era bonito, mas nem isso ele é.” Quando relacionou o ato de Lacerda a “métodos hitleristas”, o político revidou, agressivamente, chamando Carolina de “vigarista”.

Outro que passou por apuros com Carolina foi Jorge Amado, chamado ironicamente por ela de “George”. Acusado de sabotá-la em um evento literário, disse-se “magoado” com a escritora, tida como polêmica e “barraqueira” — ninguém queria ser alvo de sua ira.

Carolina deu trabalho a muita gente, mas foi precisa em marcar sua presença na cena política e cultural do país. Defendia educação de qualidade, moradia, emprego e reforma agrária. Inspirado nela, foi criado, por estudantes da usp, o Movimento Universitário de Desfavelamento (MUD), que extinguiu a favela do Canindé em 1961. Na visita ao Brasil do jornalista Alexei Adjubel, editor-chefe do jornal Izvestia, de Moscou, e genro de ninguém menos que o premiê russo Nikita Krushchov, a escritora foi o maior destaque. Uma vez em solo brasileiro, Adjubel anunciou que queria encontrar-se com Carolina e percorrer com ela “favelas paulistas”. Carolina saiu nas primeiras páginas dos jornais “agarrada” a Adjubel, que recebeu da célebre “escritora-favelada”, além de beijos, “uma garrafa de cachaça, um exemplar de seu livro, três discos e uma carta”. O dado relevante está na carta: era endereçada “ao governo soviético” e pedia “proteção para Cuba e Fidel Castro”. Teria Carolina conhecido Fidel em maio de 1959, quando este passou pelo Brasil?

Um momento marcante da vida de Carolina ocorreu às vésperas do golpe militar de março de 1964. O presidente Jango capengava no poder, com uma administração que se confrontava com a oligarquia rural e trabalhista. Carolina era próxima dele, frequentando-o sempre que podia. Seguia Thereza Goulart até no ato de vestir, com roupas confeccionadas pelo costureiro Dener, o mais famoso do país. No dia 27 de março, porém, duas semanas depois do famoso comício da Central do Brasil, Carolina publicou uma carta-manifesto apoiando as reformas propostas pelo presidente da República. Escreveu: as “reformas vêm aí como nova abolição”. No documento, redigido de próprio punho, divulgado apenas em jornal da época, Carolina dá total apoio a Jango, lançando duras críticas ao Senado. Deu-lhe parabéns “pelo gesto nobre e humano em proclamar outra abolição, as reformas de base”. Em outro tópico, diz que o presidente “agiu como médico. Examinou profundamente o Brasil e deu a receita, as reformas de base. E enviou a receita ao Senado, que é a farmácia. Os farmacêuticos, que são nossos senadores, dizem — não!”.

O apoio de Carolina custaria caro para ela, dado o destino de Jango. Depois dessa data, a escritora ficou confinada no sítio de Parelheiros, abandonando de vez a casa de Santana. Nasce daí seu ostracismo. Já o Brasil, no pós-golpe, tomou rumos sinistros com o cerceamento das liberdades. Se a vida já estava ruim para Carolina, com as baixas vendas dos seus livros a situação só se agravou, até o desfecho de sua morte, aos 62 anos, no dia 13 de fevereiro de 1977.

Este texto foi feito com apoio do Itaú Cultural.
 

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Quem escreveu esse texto

Tom Farias

Jornalista e crítico literário, lança em novembro Escritos negros: crítica e jornalismo literário (Editora Malê).