Laut, Liberdade e Autoritarismo,

O poder da imaginação

Hannah Arendt usa a literatura em busca de um pensamento alargado para tentar entender o incompreensível

01ago2021

No mito grego, Teseu deve matar o Minotauro, criatura que se encontra em um labirinto do qual ninguém logra sair vivo. Ariadne dá a Teseu um novelo de lã, que o herói desenrola ao entrar e graças ao qual consegue sair do labirinto. Em A condição humana, Hannah Arendt dá a imagem do fio de Ariadne ao que chama de grande tradição de pensamento ocidental.

Em termos históricos, conta Arendt, essa tradição se estabeleceu com a apropriação da filosofia de Platão e Aristóteles pelos romanos. Em seu cerne se encontram a precedência do mundo das ideias em relação ao das aparências, a concepção do ser humano como ser racional e uma tipologia das formas de governo construída com base nos pilares da lei e do poder. No plano das ideias, sua autoridade chegou ao fim com as contestações de Søren Kierkegaard, Karl Marx e Friedrich Nietzsche, os quais inverteram suas hierarquias conceituais, a começar pelo deslocamento da racionalidade como definidora do ser humano para distingui-lo pelo sofrimento, pelo trabalho ou pela vontade. Tão contestada tradição se rompeu, enfim, com o totalitarismo, uma nova forma de governo, cujo surgimento resulta no aparecimento de novas categorias jurídicas, como “crimes contra a humanidade” e “genocídio”.

Arendt lida de formas diferentes com a questão da ruptura da tradição em Origens do totalitarismo (1951), A condição humana, (1958) e Entre o passado e o futuro (1961) e em cursos e ensaios, alguns deles reunidos no recém-lançado Pensar sem corrimão (Bazar do Tempo). Esse material mostra que a ruptura foi processual e começou antes da ascensão dos regimes totalitários, remontando à Primeira Guerra.

Walter Benjamin refletiu sobre o caráter das experiências no conflito de uma forma que pode elucidar ideias de Arendt e seu recurso a filósofos, romancistas e poetas. Em “Experiência e pobreza” (1933), ensaio de Benjamin, os soldados saem mudos das trincheiras: suas experiências não podiam ser comunicadas e, portanto, não podiam ser transmitidas. Nas palavras de René Char, com as quais Arendt abre Entre o passado e o futuro, “nossa herança não foi precedida de nenhum testamento”.

O aforismo de Char é um fio que guia a pensadora no labiríntico problema da ruptura da tradição. Arendt lembra que Char combateu na Resistência durante a Segunda Guerra e nela experimentou a liberdade não por lutar contra a tirania, mas porque, na ação, se instituiu um espaço no qual assuntos eram discutidos e decididos em pé de igualdade. A herança era essa experiência de liberdade. Na leitura de Arendt, o problema que o aforismo de Char condensa é que essa experiência não lhe chegou acompanhada de fórmulas que o ajudassem a dar sentido a ela e a compartilhá-la. Char acusa em suma a falta daquilo que assegura a transmissão da sua experiência e que possibilitaria o início de outra tradição.

Parábola kafkiana

No prefácio de Entre o passado e o futuro, Arendt recorre a escritos de um poeta e de um romancista para fazer ver uma experiência inacessível aos sentidos — o pensar — e fornece elementos para refletir sobre os modos de dar sentido ao indizível e ao incompreensível. Elabora sobre “Ele”, uma parábola de Kafka que, para ela, “descreve com exatidão” o processo do pensamento. Na parábola, Ele, a personagem, encontra-se entre duas forças: o passado o empurra para a frente e o futuro, para trás. Na experiência, afirma Arendt, não há intervalo, mas Ele, o pensar, interrompe o curso do tempo e se encontra nessa interrupção. Pressionado dos dois lados, salta da linha e se põe em uma posição a partir da qual pode olhar o curso do tempo desde cima.

Na parábola kafkiana, o salto é a imagem do gesto de descolar o pensamento do espaço e do tempo para abrir caminho a um pensamento que se orienta na direção de uma verdade eterna, absoluta, e que pode alinhar passado e futuro, apreender a totalidade dos acontecimentos e atribuir um sentido à história. Para Arendt, esse descolamento é propício à especulação, mas não ao entendimento.

Arendt recorre a escritos de um poeta e de um romancista para dar sentido a uma experiência inacessível: o pensar

Na versão arendtiana, Ele muda o sentido do passado, o qual, por seu turno, forma um ângulo com o futuro, e a partir desse ângulo ganha forma um paralelogramo. Para Arendt, o paralelogramo é a forma do espaço do pensamento, e o tempo em que Ele se move é a linha traçada a partir do encontro entre o passado e o futuro em um ângulo. Em sua versão da parábola, Arendt assume o caráter transformador da prática de pensar, retorna o pensamento ao mundo e dá uma imagem à ideia de que pensar é acessar o mundo de um ângulo que se liga ao mundo tal como ele aparece quando é visto de outro ângulo. É uma prática solitária e intersubjetiva.

A tradição inaugurada por Platão reconhece a potência da palavra poética, mas também a associa ao que desvia da busca pela verdade. Arendt orienta-se por outra ideia. Para ela, a verdade é revelação: por um lado, ilumina o que existe; por outro, deixa-se ver na opinião de que o diálogo, o modo filosófico de falar, libera de contradições. O diálogo, interessado em saber como o mundo se abre ao outro, possibilita reconciliar o que a tradição separou: verdade e opinião.

Cabe à imaginação construir pontes para o passado e para o futuro e, também, para o que é incompreensível no presente

Nesse processo, como na literatura, cabe à imaginação construir pontes para o passado e para o futuro e, também, para o que é incompreensível no presente. Seguindo as pegadas de Kant, Arendt afirma que a imaginação fornece esquemas que possibilitam à mente reunir dados apreendidos pelo aparelho sensório, imprimir ordem à multiplicidade, pensar abstratamente a partir desses dados e elaborar sobre a experiência, o que dá abertura a se reconhecer o novo, representá-lo ao pensamento e torná-lo comunicável.

Para Arendt a imaginação atua como uma dobradiça que se abre para a sensibilidade e o intelecto. Ela é importante para compreender acontecimentos presentes e pretéritos, para nos reconciliarmos com o mundo ou para nos entendermos com os outros. Importa quando se trata do que Arendt chamou, com Kant, de pensamento alargado. Arendt não recorre a romances e à poesia para se distrair do real, e sim para entender, nele, o que as categorias de pensamento já não podem esclarecer. Quer, com a literatura, o que quis na vida: entender o incompreensível. 

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

Renata Nagamine

É professora da UFBA.