Laut, Liberdade e Autoritarismo,

O militante da intimidade

Quem foi René Ariel Dotti, advogado criminalista pioneiro das liberdades informáticas durante a ditadura brasileira

26abr2021

Laís Bergstein já trabalhava havia quase dez anos com René Ariel Dotti quando descobriu uma faceta pouco conhecida do renomado advogado criminalista paranaense. Em 2019, enquanto atuava num caso de liberdade de expressão e acompanhava as discussões sobre direito ao esquecimento, recebeu uma dica do chefe. René recomendou que desse uma olhada num livro publicado por ele em 1980 e nunca reeditado.

O livro, Proteção da vida privada e liberdade de informação, dialogava com o estado da arte da discussão mundial sobre privacidade na época em que foi escrito e já defendia conceitos que só seriam consolidados pelo Supremo Tribunal Federal (STF) quatro décadas depois, como a distinção entre privacidade e sigilo e a ideia de controle sobre fluxos de informações como direito básico dos cidadãos, nas trilhas de pioneiros como Alan F. Westin e Stefano Rodotà, autores que pensaram a proteção de dados na década de 1970. “Veja, ele tem uma produção muito vasta”, diz Laís. “E essa obra ficou muitos anos na prateleira.”

Morto no início de fevereiro, aos 86 anos, René Ariel Dotti foi uma sumidade do direito penal e recebeu os louros de acordo. Nenhum dos obituários e perfis publicados em sua homenagem deixa de mencionar a atuação do advogado na defesa de estudantes, professores, sindicalistas, jornalistas e militares durante a ditadura no Brasil. E foi nesse contexto que ele começou a olhar para os riscos do acesso irrestrito por parte do Estado às informações da população.

“Um dos tópicos do livro é o problema da informática, a utilização abusiva da informática, como ele chamou naquela época”, explica Rogéria Dotti, filha de René e também advogada. “Ele diz que diversamente das agressões clássicas, que poderiam ser analisadas perante os tribunais, o registro e a divulgação sobre as qualidades morais poderão ser processadas silenciosamente sem que os atingidos tenham a oportunidade de conhecê-las para discutir nos tribunais o seu conteúdo.”
 


Miguel Reale Jr. (em pé na esquerda), René no centro e Luiz Chemin Guimarães [Acervo da família]

Oito anos antes da publicação de Proteção da vida privada e liberdade de informação, uma equipe da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP) anunciou o primeiro computador brasileiro. A inauguração foi feita pelo então reitor, Miguel Reale. O Brasil vivia sob comando de Emílio Garrastazu Médici. Eram tempos de aposta no milagre econômico e no “Brasil, país do futuro”. Militares, apoiados por engenheiros e por empresários brasileiros, acreditavam em um país com uma indústria de informática forte. 

Terror e temor

Para René, no entanto, eram tempos de “terror e temor”, como disse em depoimento para um projeto sobre resistência à ditadura no Paraná. René era considerado um agente subversivo, um agitador, conforme mostram documentos produzidos na época da disputa pela liderança da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no Paraná. 

No mesmo depoimento René conta que recebeu de um amigo um aviso inusitado: agentes da ditadura faziam uma devassa no seu imposto de renda em busca de indícios de que tivesse recebido dinheiro da China ou da Rússia, uma prova de que seria comunista. Se isso poderia suscitar uma reflexão-chave para a defesa da privacidade, o verdadeiro motivo que o fez escrever Proteção da vida privada foi outro: um caso em que atuou como advogado em meados dos anos 1970 e que o indignou, contam Rogéria e Laís. No entanto, os pormenores da história se perderam. Fato é que a partir dessa inspiração ele escreveu o livro para um concurso nacional de letras jurídicas — no qual ficou em primeiro lugar. “Eu tenho convicção de que ele escreveu o texto em 1977 ou 1978, mas a obra só foi publicada em 1980”, conta Rogéria. No livro, René estabelece paralelos com o que havia sido discutido nos Estados Unidos na década anterior e em novos paradigmas estabelecidos por França e Portugal.

Inspirado na experiência portuguesa, que incluiu na sua Constituição uma vedação expressa à discriminação com base em informações políticas e de associação, René passou a discutir a privacidade pelo prisma da liberdade informática, ou seja, pela concepção de contenção de abusos no uso de bancos de dados a partir de uma ideia das liberdades políticas.

Crítico notável do Registro Nacional de Pessoas Naturais (Renape), proposta dos militares de unificação das identificações civis em uma única base de dados gerida pelo Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro), René argumentou que o Brasil precisava afirmar direitos constitucionais à liberdade informática e exigir salvaguardas e controles à atividade do poder público. Em seu livro, analisou a experiência francesa da Comissão Nacional da Informática e das Liberdades (CNIL) e advogou por um regime de direitos básicos com relação aos dados pessoais.

Esse era o germe da ideia do “Habeas Data”, uma criação jurídica latino-americana que ganhou força na Comissão Afonso Arinos a partir dos trabalhos de José Afonso da Silva, que defendeu um direito constitucional de retificação e eliminação de tratamento de dados sensíveis como religião, orientação filosófica e atividades políticas. 

René faria uma apresentação pública dessa discussão numa oportunidade célebre. Em 1980, um ano após a Lei da Anistia, a OAB promoveu um encontro sem precedentes no Hotel Tropical, em Manaus. Hoje abandonado, o Tropical era um símbolo da mesma promessa de país do futuro nos anos 1970. Na oportunidade, com os primeiros acenos de abertura política, o tema do encontro trazia um ar de esperança: Liberdade. O pano de fundo, no entanto, era outro. “Essa conferência foi marcada por uma disputa pela sucessão na presidência da OAB”, diz o advogado Técio Lins e Silva, presente à época. Os principais candidatos eram Bernardo Cabral e Sepúlveda Pertence — Bernardo levou. Política à parte, os temas discutidos já abordavam problemas jurídicos que o Brasil pena em resolver até hoje. “Eu apresentei a minha tese sobre prisão cautelar. Veja só, já me preocupava com esse negócio de condução coercitiva, botar o cara em cana para depor, Deus me livre”, conta Técio.

A tese de René, por sua vez, chamava-se A liberdade e o direito à intimidade. Além de retornar ao trabalho explorado em seu livro sobre o mesmo tema, o advogado elogiou uma tentativa de emenda constitucional proposta anos antes por José Roberto Faria Lima, deputado federal por São Paulo na década de 1970. 

Com experiência de trabalho na IBM, José Roberto teve um papel importante na informatização do Congresso brasileiro ao mesmo tempo que tentou estabelecer limites ao uso de dados pessoais pelo governo. A ideia, sintetiza o ex-deputado, era de que alguém deveria ter acesso a toda informação sobre si mesmo, inclusive para saber se era verdadeira. Além disso, nenhuma informação poderia ser transmitida para outrem — de um órgão do governo para outro, por exemplo — sem autorização da pessoa a quem essa informação dizia respeito. “Eu dizia que a informação é irmã gêmea da intimidade, e, se você acaba com a intimidade, você acaba assumindo o controle de um poder total”, explica José Roberto. “Minha preocupação era esse controle total da informação.”

O projeto não foi aprovado. Em compensação, o modelo de um número único que centralizasse todos os dados de uma pessoa em um só local, a melhor expressão do medo tanto de José Roberto Faria Lima quanto de René Dotti, também não virou realidade na época. A ditadura tentou: ao longo dos anos 1970, foi discutida a criação do Renape, mas ele acabou abandonado.

No final da tese apresentada durante o encontro da OAB em 1980, René apresentou cinco conclusões. A quinta (“A utilização da informática deve merecer disciplina constitucional, observando-se os seguintes princípios”) divide-se em outros cinco pontos. O último deles assinala: “O impedimento da atribuição de um número ou registro nacional único das pessoas naturais”. É como se, mesmo depois de uma pequena vitória, René se recusasse a baixar a guarda.

Campo político

Na verdade, a impressão é de que a guarda do advogado esteve sempre tão levantada a ponto de antever problemas que se cristalizariam só anos depois. Apesar da atuação diversificada, René era mais conhecido pelo trabalho no direito penal. Mas suas reflexões sobre privacidade, uma questão aparentemente circunscrita ao direito civil, mostravam uma clareza sobre como dados pessoais obtidos para fins da administração pública — como seu imposto de renda — poderiam ser utilizados para perseguição política no futuro. Ao partir de sua própria experiência no autoritarismo, René deslocou a proteção de dados para um campo propriamente político, e não mais da “vida íntima”.


René Ariel Dotti atuou na defesa de perseguidos políticos durante a ditadura e tornou-se um criminalista renomado [Acervo da família]

“Ele sempre gostou de muitas coisas ao mesmo tempo, e isso trouxe riqueza para o trabalho dele”, diz Rogéria. “Então essa pluralidade abria a cabeça e mostrava outros mundos para ele.” Um homem gentil, René nunca se negou a compartilhar com todos a sua volta o conhecimento acumulado por meio dessa pluralidade, nem se cansou de trabalhar em prol daquilo em que acreditava.

Suas reflexões mostravam como dados pessoais podiam ser utilizados para perseguição política

Ele faleceu em uma quinta-feira, 11 de fevereiro. Na segunda anterior, discutiu com Laís Bergstein ideias e conceitos para um artigo a ser assinado pelos dois sobre direito ao esquecimento. Na terça, mostrou, orgulhoso, para Rogéria um volume que acabara de receber da Coleção 80 anos do Código Penal, para a qual escreveu o prefácio. Na quarta, escolheu a capa (“Verde, igual ao time dele do coração”, diz Rogéria, em referência ao Coritiba) para uma nova edição do seu livro Casos criminais célebres. “Ele estava muito feliz com o livro cujo prefácio escreveu”, conta Rogéria. “E havia ampliado muito o texto do Casos criminais célebres, como se soubesse que seria a última edição.”

Técio Lins e Silva, que se tornou amigo de René durante a ditadura, quando o grupo de advogados que trabalhavam de forma gratuita em prol dos perseguidos políticos era muito restrito, lembra um episódio marcante na relação dos dois. Nos anos 1990, dois ex-funcionários do Banco Central peruano foram presos em Curitiba após darem um golpe no banco. O Peru, à época governado por Alberto Fujimori, contratou Técio para trabalhar na extradição dos golpistas. René, por sua vez, era o encarregado de defendê-los. Ao longo de um processo de anos, a relação dos dois ficou estremecida e os advogados pararam de se falar. Até que um dia René se aproximou de Técio no plenário do STF. “Ele me chamou, pegou no meu braço e com aquele sotaque fortíssimo disse: ‘Vamos parar com isso, vamos fazer as pazes. Os clientes passam, nós continuamos’.” A luta também.

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

João Paulo Vicente

É jornalista e roteirista.

Rafael Zanatta

É é diretor da Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa e autor de Economias do compartilhamento e o direito (Juruá).