Laut, Liberdade e Autoritarismo,

O homem da lei

Quem foi Carlos Alberto Caó, autor da lei que tipificou o racismo como crime e que segue invisibilizado entre as figuras negras históricas

24nov2021

“Negrinha nojenta, ignorante e atrevida.” A ofensa, proferida a uma frentista por uma cliente em um posto de gasolina do Distrito Federal, em 2012, culminou no entendimento do plenário do Supremo Tribunal Federal de que a injúria racial pode ser enquadrada criminalmente como racismo, tornando-se, portanto, imprescritível, conforme estabelecido na Lei nº 7.716/89. A decisão do STF, em 28 de outubro de 2021, por oito votos a um, marcou simbolicamente a trajetória do homem que deu nome à tal lei e que neste 24 de novembro, logo após o Dia da Consciência Negra, teria completado oitenta anos.

O nome de Carlos Alberto Caó, advogado, jornalista e político, ficou ao largo dos movimentos de resgate de figuras negras históricas em curso no país. Suas quase oito décadas de vida, para usar uma expressão contraditória, passarão praticamente em branco. Caó foi lembrado apenas num verbete na recém-lançada Enciclopédia negra: biografias afro-brasileiras (Companhia das Letras), organizada por Lilia Moritz Schwarcz, Flávio dos Santos Gomes e Jaime Lauriano.

Nascido em 1941, na Federação, bairro central de Salvador, antes dos quinze anos Betinho assumiu o cargo de secretário da associação de moradores local e engajou-se na campanha O Petróleo É Nosso; aos dezessete, foi eleito vice-presidente do Centro Acadêmico do Colégio Central da Bahia. Depois, foi vice-presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE) até assumir a presidência da União dos Estudantes da Bahia (UEB).

Em 2018, quando morreu, foram poucos os obituários robustos. Um vislumbrava: ‘Caó ainda vai entrar nos nossos livros didáticos e escolares’

“Conheci Betinho no Central, em 1956 ou 1957. Ele entrou na sala em que eu assistia à aula para fazer campanha para o centro acadêmico. Ele já tinha uma retórica de militante político, o que não era típico na nossa idade. Impliquei com aquilo, fiquei fazendo graça, debochando. Quando ele acabou de falar, eu já estava convencido. Ganhou meu voto e um amigo”, diz o jornalista, sociólogo e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro Muniz Sodré.

Salvador passava por uma efervescência cultural, atribuída em grande parte ao “surto de modernidade” do reitor Edgar Santos, da Universidade da Bahia, sobretudo entre os anos de 1954 e 1961. A universidade e o Centro Popular de Cultura da UNE funcionavam como polos de referência, aglutinando parte dos personagens que definiriam os rumos da cultura nos anos seguintes: o cineasta Glauber Rocha, o geógrafo Milton Santos,  o escritor João Ubaldo Ribeiro, o poeta José Carlos Capinam, os compositores Caetano Veloso, Tom Zé e Gilberto Gil. Betinho já liderava a UEB e militava no PCB.

Jurista e ex-prefeito de Salvador, Edvaldo Brito, colega de Betinho na universidade, lembra-se da manifestação contra a presença de Carlos Lacerda na aula inaugural do ano letivo de 1964. “Houve um protesto na Praça da Sé e os estudantes caminharam até a reitoria, que fica a uma distância expressiva. Quando chegaram, o auditório já estava lotado.” O palestrante seria o ex-ministro da Fazenda Clemente Mariani, a convite do reitor Albérico Fraga, todos eles da conservadora União Democrática Nacional (UDN). Brito conta que, no episódio, Betinho demonstrou a força política que marcaria sua carreira.
 


Carlos Alberto Caó na Câmara dos Deputados. Ao fundo, entre outros políticos, está Luiz Inácio Lula da Silva. [Arquivo Câmara dos Deputados]

“Eles invadiram o salão nobre e a confusão estava feita. No meio do caos, uma voz ergueu-se entre os estudantes. De pé, sobre uma das cadeiras acolchoadas do auditório, Betinho fez um discurso profundo, enérgico e conciliador”, conta. “Foi uma coisa linda.” Caetano Veloso faz uma descrição semelhante em suas memórias.

Príncipe nigeriano

Tanto o golpe de 64 como a deposição de João Goulart viriam poucos dias depois, no mesmo mês de março. Perseguido, Betinho caiu na clandestinidade e, tempos depois, partiu com a mulher, Teresa Sarno, para o Rio de Janeiro. A militância estudantil no Partidão e o caldo cultural baiano forjaram a transformação do estudante Betinho no jornalista Carlos Alberto Oliveira. Passou por boa parte dos veículos locais: Luta Democrática, Tribuna da Imprensa, O Jornal e TV Tupi, até chegar ao Jornal do Brasil.

Um dos raros pretos na redação, no então maior diário do país, Caó assumiu a editoria de Economia em 1970. A cobertura econômica havia ganhado espaço no JB em detrimento da política, que sofria com a censura. Por cerca de um ano, Caó seguiu uma linha menos condescendente e mais crítica ao governo. Foi ali que passou a assinar com o acrônimo Caó -— e a desagradar a autoridades. Acusado sem provas de usar a editoria em benefício próprio, Caó foi dispensado. Após a decisão, um amigo o chamou num canto e disparou: “Você foi demitido porque é preto”. O recém-desempregado devolveu: “Mas eu já era preto quando fui contratado”.

“Ele era um negro que chamava a atenção, uma espécie de príncipe nigeriano. Era baixo, magro, tinha aquele sotaque baiano forte e uma postura que impunha respeito. Não se ficava indiferente à presença dele”, diz George Vidor, que foi colega de Caó, mas trabalhando em O Globo, além de ter sucedido a Caó  na presidência da Associação de Jornalistas de Economia e Finanças (Ajef), da qual o baiano foi um dos fundadores.

Caó então foi para a Veja. Não demorou a conseguir uma entrevista com o presidente Ernesto Geisel -— e voltou a ter problemas. “Precisamos cortar as asas desse crioulo”, um colega lhe relatou ter ouvido. Caó diria que aquilo era despeito e ciúme, e que a entrevista foi a pior coisa que poderia ter feito ali. Logo foi eleito presidente do Sindicato dos Jornalistas do RJ por dois períodos (de 1978 a 81), e foi recrutado por Leonel Brizola para um PDT em construção. Ficou no partido até o fim da vida.

Lei Caó

Militante dos direitos civis e doutor em história comparada pela UFRJ, o babalaô Ivanir dos Santos foi o responsável por aproximá-lo das camadas populares negras em 1982, por ocasião de sua primeira campanha para deputado federal. Eleito suplente, Caó se licenciou para assumir a Secretaria de Habitação e Trabalho de Brizola. A secretaria era dividida entre o PCB, seu antigo partido, e o movimento negro e por isso era chamada, às escondidas, de “navio negreiro”.

Em 1986, foi eleito para a Assembleia Nacional Constituinte. É o autor do projeto de lei que daria origem à Lei nº 7.716, que tipifica o crime de racismo, sancionada em janeiro de 1989 pelo presidente José Sarney.

“Ele conseguiu aprovar a lei porque dialogava com todo mundo. Tinha essa coisa de saber ouvir, ouvir e ouvir. E argumentar. Habilidades que trouxe do movimento estudantil e sindical. E o que ele conseguiu com isso? Uma articulação com integrantes progressistas da comunidade judaica, que foi fundamental”, crava Ivanir dos Santos. “Foi o mais importante quadro negro político do país daquele período. Sabia lidar com os diversos grupos, com as artimanhas. Demorei muito a entender isso.”

Ex-presidente da Federação Israelita do Estado do Rio de Janeiro, Sérgio Niskier orgulha-se de ter estado ombro a ombro com Caó na organização de importantes manifestações contra o racismo e o antissemitismo no estado do Rio. “Nós não nos conhecíamos. Passei a admirá-lo quando ele ainda era secretário. Então eu o procurei e disse que estaria ao lado dele para o que precisasse.”

Uma série de derrotas a partir de 1990 o afastou do jogo. A idade e o diabetes acabaram contribuindo para o seu silenciamento. Em fevereiro de 2018, quando Caó morreu no ostracismo, foram poucos os obituários robustos. Um deles, da historiadora Lilia Schwarcz, vislumbrava: “Carlos Alberto Caó ainda vai entrar nos nossos livros didáticos e escolares”.

É necessário que o manto da invisibilidade que o encobre seja retirado. “Ele foi importantíssimo, deveria estar em uma Galeria de Grandes Brasileiros. Não é uma questão apenas dos negros. As pessoas não têm a dimensão da importância de Carlos Alberto Caó para o país”, afirma Niskier.

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

Jaime Filho

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