Laut, Liberdade e Autoritarismo,

Deixar viver, deixar morrer

Como as desigualdades raciais e de gênero foram intensificadas durante a pandemia de Covid-19

01set2020

Completamos em agosto no Brasil seis meses de Covid-19 desde a notificação do primeiro caso, em 26 de fevereiro, ultrapassando a marca dos 100 mil mortos. O primeiro óbito oficialmente divulgado ocorreu em março, quando começou a nossa descoordenada política de distanciamento social, com ações desencontradas, ausência de liderança nacional da crise, falta de responsabilidade e nem sequer demonstrações de empatia pelo governo pelos que morreram.  

Esse cenário distópico tem nos levado a apresentar alguns dos piores indicadores internacionais relacionados à pandemia. Soa como um projeto de manutenção das desigualdades sociais construídas de forma interseccional: raça e etnia, classe e território, gênero e sexualidade se intercruzam na produção das desigualdades sociais e na distribuição de poder na sociedade. Na condição de quem investiga, leciona e escreve há trinta anos sobre a temática das desigualdades raciais e de gênero no Brasil, vejo-me perplexa. Essa perplexidade vem do fato de que, mesmo diante de mais de 100 mil mortes, o projeto em curso vem para tornar ainda piores essas desigualdades.

Essa conjuntura destacou as fragilidades do acesso à saúde no país, especialmente dos mais pobres e negros, mostrando os impactos da pandemia sobre nossas desigualdades. Mas não se trata apenas da esfera da saúde. Os âmbitos do trabalho, da educação, da renda, da violência doméstica e da violência policial têm revelado e aprofundado nossas desigualdades.

Em se tratando de desigualdades é sempre importante lembrar que se trata de fenômeno relacional — pois sempre é observado em relação a outro indivíduo, grupo, país etc. — e também multidimensional. As desigualdades definem-se pelo processo de hierarquização de classes e atributos (como raça, gênero, nacionalidade etc.), que altera a forma como diversos tipos de recursos são distribuídos na sociedade. Desigualdades são reparáveis e não podem ser naturalizadas. Sua naturalização configura uma forma de discriminação. Outro aspecto importante, como lembra o sociólogo Göran Therborn, é que há tipos distintos de desigualdades, com consequências variadas na vida das pessoas e de grupos. Trazendo essa abordagem para entender as ações e políticas de enfrentamento da Covid-19 no Brasil, o que temos é um retrato trágico dessas desigualdades combinadas a seu caráter interseccional.

Efeitos perversos

No que diz respeito à desigualdade vital, sabemos que saúde e longevidade são distribuídas segundo diferentes padrões sociais, raciais e de gênero. Com a divulgação dos primeiros dados da epidemia desagregados por raça/cor, identificou-se um impacto diferenciado da Covid-19 nas populações negras no Brasil, fenômeno que se repetia em países latino-americanos e nos Estados Unidos. Foi constatado que havia menor registro de pretos e pardos com a doença, mas um maior número de óbitos entre eles. Com o avanço da epidemia, os dados evidenciam mais os efeitos perversos da estrutura das desigualdades na vida e na morte dos mais vulneráveis.

A população negra é a que depende mais exclusivamente do Sistema Único de Saúde (SUS) e a que representa a maioria dos pacientes com diabetes, tuberculose, hipertensão e doenças renais crônicas no país, consideradas agravantes da Covid-19. Soma-se a isso outro aspecto marcante: as desigualdades na distribuição de serviços públicos (como água e saneamento básico), na mobilidade urbana e no acesso a hospitais, o que revela a importância da dimensão territorial.

Há menor registro de pretos e pardos com a doença, mas um maior número de óbitos entre essa população

A interface raça, gênero e saúde revelou inúmeras situações dramáticas, uma delas na saúde reprodutiva. É digna de nota a reportagem da jornalista Claudia Collucci, publicada em julho na Folha de S.Paulo, que demonstra que o Brasil concentra 77% das mortes de gestantes e puérperas pela doença registradas no mundo. Com esse estudo, concluiu-se que o risco de morte das mulheres negras tem sido quase duas vezes maior do que o das brancas. O tema da saúde reprodutiva sempre foi item de destaque na agenda das feministas negras. Demandas por políticas de equidade racial no SUS são de longa data. Entretanto, alguns avanços — como a inclusão do quesito raça/cor nos repositórios de informações do sus e a criação do Programa Nacional de Saúde Integral da População Negra — são limitados pelo processo de implantação e gestão das políticas, como, por exemplo, os problemas de subnotificação. 

As desigualdades materiais — relacionadas a acesso a produtos e recursos — são as que mais se evidenciam em análises e pesquisas sobre o tema. Circunscritos ao mercado de trabalho e à renda, os resultados das investigações demonstram que as clivagens étnico-raciais e de gênero aumentam a vulnerabilidade desses grupos, em especial das mulheres negras. 

O emprego doméstico é um dos principais exemplos. No final de 2019, de acordo com dados do quarto trimestre da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) contínua, o Brasil tinha 6.355.569 trabalhadores domésticos. Eles correspondem a 6,7% das pessoas em idade de trabalho. O trabalho doméstico, em que mais de 90% das pessoas são mulheres, é também mais negro — esse grupo compõe 54% do total da mão de obra nacional e 66% dos trabalhadores domésticos. E um dado ainda mais marcante: 52,8% dos empregados domésticos são pessoas de referência no seu domicílio, significando que têm renda mais alta do que a do restante da família. 

Trata-se de uma mão de obra extremamente vulnerável, dados sua baixa formalização e seu baixo rendimento. Ao mesmo tempo, é elemento constituinte do padrão de vida das classes médias e da elite do país. Tão central que as empregadas domésticas mensalistas formam o conjunto de variáveis dos itens do domicílio para a determinação da classe social nas pesquisas de mercado, seguindo diretrizes da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa (Abep).

Desde o início da pandemia, esse tem sido um tema candente. A primeira vítima da Covid-19 no Rio de Janeiro foi uma empregada doméstica de 63 anos que contraiu a doença da patroa que acabara de chegar de uma viagem ao exterior. A morte de Miguel, aos nove anos, tornou-se uma das cenas mais dolorosas desta pandemia. Mirtes, obrigada a atender a exigência da patroa de manter sua atividade laboral durante a pandemia, sem escolas ou creches para deixar seu filho, viveu no extremo as consequências de uma realidade que afeta milhões de trabalhadoras negras deste país. A desigualdade de renda tem sido mitigada pelo auxílio emergencial, mas sua extensão e durabilidade deixam a apreensão sobre o que pode acontecer num futuro próximo.

Por fim, todo esse cenário nos leva a pensar nas desigualdades existenciais, que implicam a negação de igual reconhecimento e respeito para os diversos grupos existentes na sociedade. A Covid-19 no Brasil também elegeu as categorias silenciadas, apagadas e destituídas de acesso aos recursos mínimos. Quilombolas e indígenas, que vivem o drama da luta pelo reconhecimento e manutenção dos seus territórios, enfrentaram a ausência de políticas e a subnotificação dos casos, duas formas potentes de apagamento. A população carcerária e a população em situação de rua, por não terem qualquer visibilidade aos olhos das políticas sociais do Estado brasileiro, permanecem silenciadas e passam pelo julgamento moral de quem merece receber cuidados e de quem merece viver neste momento. Como nos ensina Sueli Carneiro, estamos sob a égide de um Estado no qual biopolítica, gênero e raça se articulam definindo os perfis para o “deixar viver e deixar morrer”.

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

Márcia Lima

Professora do Departamento de Sociologia da FFLCH-USP e coordenadora do Afro-Cebrap.