Laut, Liberdade e Autoritarismo,

Dados virais

Pesquisa sistematiza como o poder público desenvolveu e adquiriu soluções tecnológicas de combate à pandemia de Covid-19

25out2021

O sociólogo David Lyon afirma, em seu clássico livro The Electronic Eye: the rise of surveillance (Olho eletrônico: o aumento da vigilância), que a emergência de uma sociedade de vigilância é, de certa forma, filha do Estado de bem-estar social (welfare state). Para ter acesso à educação, à saúde, à previdência, entre outras políticas públicas, necessariamente a população tem que confiar seus dados ao governo, já que a tão desejada assistência social estaria condicionada a fornecê-los ao "Big Brother". O "cidadão [precisaria ser] conhecido" é a conclusão e a tradução do título do livro da historiadora Sara Igo (The Known Citizen: A History of Privacy in Modern America), lançado nos Estados Unidos em 2018, que também situa o momento em que o debate sobre proteção de dados se intensificou.

Não é, portanto, por acaso que leis de proteção de dados pessoais emergem justamente quando se consolida o movimento de políticas públicas baseadas em evidências (evidence-based policymaking). Uma infraestrutura jurídica que é forjada para fixar direitos e deveres, de forma cruzada, entre cidadão e Estado, de sorte que o primeiro tenha seu voto de confiança correspondido pelo segundo. Esse resgate histórico revela que o direito à proteção de dados foi desenvolvido para estimular a circulação de informações e não escondê-las.

Da implementação das medidas de distanciamento social, passando por rastreamento de contato e chegando mais recentemente aos chamados passaportes das vacinas, a proteção de dados tem sido, por vezes, utilizada como uma espécie de espantalho para sabotar políticas públicas de combate à pandemia. Como já alertamos, é preciso entender que tal direito fundamental não rivaliza com esse propósito. Pelo contrário, trata-se de um falso trade-off.

Aliás, faz parte, necessariamente, de uma gestão pública que seja baseada em ciência (dados) e que não seja negacionista e parametrizada por achismos. Valores que atravessam todo o debate público sobre a (dis)função do Estado brasileiro no combate à pandemia e, principalmente, para que este não abuse da sua posição.

É sob esse pano de fundo que se situa a pesquisa Dados Virais, que sistematiza como o poder público, nas mais diferentes esferas da federação, desenvolveu e adquiriu soluções tecnológicas de combate à pandemia. Após a realização de cerca de oitocentos pedidos de lei de acesso à informação, foi feita uma cartografia do território brasileiro que joga luz sobre a constituição de um novo mercado — dado o alto número de parcerias públicas e privadas. Ao todo, foram mapeadas mais de 250 tecnologias e mais de cinquenta atores econômicos que compõem uma cadeia econômica bastante complexa. Um esforço que permite contrastar o que (não) foi feito no Brasil diante de outros países para o combate à Covid-19.

Para além da notória desarticulação da uma política nacional — que fez com que o vírus escalasse de forma desenfreada no Brasil —, os dados abertos da plataforma permitem analisar criticamente se a gestão pública municipal sofreu do denominado “fetichismo tecnológico”. Ou seja, se, ao final, não foi montado um aparato artificial, que se deu no vácuo, sem estar integrado a um conjunto de ações junto à população para se combater de forma minimamente efetiva a Covid-19. Por exemplo, se a medição de distanciamento social foi acompanhada de campanhas de conscientização — seja por alertas via SMS ou por agentes de saúde in loco — em áreas e bairros específicos que indicaram menores índices de contaminação. Ou, ainda, se o monitoramento de áreas públicas foi acompanhado pela distribuição de máscaras à população, entre outros equipamentos de proteção individual, quando se flexibilizou os lockdowns. Ao fim e ao cabo, se as políticas públicas em âmbito municipal, estadual e federal não foram hackeadas pela ideologia do solucionismo tecnológico, como sinalizou o cientista da computação bielorusso Morozov.

É urgente refletir se o legado da Covid-19 será de vigilância e de um aumento da dependência do Estado diante do setor privado 

O setor tecnológico acaba por levantar uma série de cruzamentos em termos de inovação que normalizam algumas interferências que antes eram vistas como legítimas e que, hoje, no entanto, têm sua legitimidade questionada. Essa complexidade é evidenciada quando associada ao fenômeno de transgressão de esferas, como foi chamada pela filósofa Tamar Sharon. Em outras palavras, estamos olhando para o desenvolvimento de políticas de saúde pública realizadas sem o envolvimento de profissionais originários desse setor, dada a "invasão" de empresas de tecnologia nessa seara, e, assim, verifica-se como a inovação pode se tornar exploradora e não restrita às emergências. Isso significa não apenas a perda de seu verdadeiro significado — que é fagocitado pela lógica distributiva da esfera inadequada —, como também, por vezes, a marginalização desses profissionais acaba excluindo a perícia médica, prestando de serviços precários e ineficientes, com impactos negativos na saúde dos cidadãos.

Legado

Das 253 tecnologias mapeadas na plataforma Dados Virais, aproximadamente 55% não tiveram qualquer documentação localizada, seja por meio dos pedidos de acesso à informação ou pela pesquisa em Portais da Transparência e sites de Diários Oficiais. O elevado número de contratos ou termos de acordo não encontrados contribui para um cenário de incertezas quanto à maneira como se deu a formalização da parceria para aquisição de tecnologias pelo poder público, de modo que dois aspectos merecem destaque.

O primeiro é compreender se a gestão pública adotou, de forma acrítica, tecnologias sem as devidas salvaguardas para a proteção dos dados pessoais da população. Através de tais documentações é que se conseguiria checar: a) se foram implementados procedimentos técnicos capazes de proteger a identidade das pessoas, seja por processos de anonimização ou pseudonimização; b) se os parceiros privados são controladores das bases de dados, abrindo oportunidade para o teste e aperfeiçoamento de seus próprios sistemas e, inclusive, para o desenvolvimento de futuras versões a serem comercializadas.

Nesse sentido, e já destacando o segundo ponto de atenção, várias das tecnologias atualmente empregadas podem se transformar em importantes mecanismos de acesso a serviços públicos essenciais e que são disponibilizadas sob contratos que, embora inicialmente firmados de forma gratuita, não permanecerão assim por muito tempo. Cabe, pois, questionar como ficará a situação quando houver o término da pandemia e se a prestação de serviços públicos essenciais ainda dependerá dessas corporações, suscitando-se problemáticas quanto ao acesso à saúde por meio dessas tecnologias adquiridas durante a pandemia. 

É urgente avançar, não só no diagnóstico, mas, também, no prognóstico se o legado da Covid-19 será de vigilância e de um aumento da dependência do Estado diante do setor privado para a formulação e prestação de políticas e serviços públicos. Há um risco de que os bens e interesses públicos possam ser capturados e guiados por uma lógica de interesses individuais e corporativos.

LGPD e LAI

Apesar de, historicamente, o fio condutor das leis de proteção de dados ser o controle individual por parte da própria pessoa titular dos dados, cada vez mais se evidencia a necessidade de voltar a direção para um controle coletivo e mais compartilhado. A possibilidade de dimensionar e sistematizar o cenário de aquisição das tecnologias disposto na plataforma interativa Dados Virais teve o intuito de corroborar esse tipo de participação social e escrutínio público. É uma plataforma de contravigilância em que se permite observar quem observa(ou) a população no estado de calamidade pública e, por conseguinte, se o propósito legítimo, de tutela da saúde pública, foi atingido e continuará guiando o lançamento dessas tecnologias em nosso meio ambiente.

Contudo, os recorrentes problemas nos canais de transparência do governo — como o mau funcionamento dos websites oficiais e das plataformas e-SIC —, o elevado número de pedidos sem resposta e o atendimento insatisfatório das solicitações enfraquecem uma das principais ferramentas pelas quais o cidadão e a sociedade civil recorrem para superar a assimetria de informação e a opacidade dos governos e das relações público-privadas. Além de uma obrigação legal prevista na Lei de Acesso à Informação (LAI), o princípio constitucional da publicidade da administração pública determina que tais ações do governo estejam sob a luz do sol. Trata-se de um cenário preocupante quanto à efetivação da transparência e da publicidade na administração pública.

Ao prejudicar o acesso e a qualidade das fontes oficiais de informações, mais uma barreira é imposta à compreensão da dimensão em que tecnologias baseadas em dados pessoais vêm sendo incorporadas, de maneira que eventuais perigos concernentes ao compartilhamento dos dados e possíveis riscos ligados aos seus usos secundários pelo poder público ficam prejudicados. Trata-se de entraves constituídos às suas formas de apropriação, bem como à avaliação de seus potenciais impactos, de modo que é importante observar as informações para se avaliar licitude do tratamento dos dados e garantir a observância quanto à sua conformidade de proteção de dados.

Em poucas palavras, o descumprimento da LAI, seja em termos de transparência ativa e passiva, apresenta-se como um dos principais desafios para visibilizar o fluxo de dados no combate à pandemia e, assim, verificar o seu respectivo nível de conformidade à Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Ambas políticas públicas, de transparência e de proteção de dados, são interdependentes. Sem essa combinação, corremos o risco de se distanciar de políticas públicas baseadas em evidências e cair no conto de fadas do solucionismo tecnológico.

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

Bruno Ricardo Bioni

Diretor e cofundador do Data Privacy Brasil.

Daniela Dora Eilberg

Doutoranda e mestra em ciências criminais pela PUC-RS, é pesquisadora sênior da Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa.