Laut, Liberdade e Autoritarismo,

Dados devassados e desgovernados

Enquanto cultura e legislação para proteção de dados engatinham, o governo federal dá passos largos para tentar controlar suas informações e vigiar você

26abr2021

O professor Paulo Sérgio Pinheiro tomou um susto quando atendeu o telefone naquela tarde fria que fazia em São Paulo em meados de julho, apesar do sol. Foi surpreendido com a notícia, dada em primeira mão pelo jornalista Rubens Valente durante a ligação, de que figurava em um dossiê secreto com centenas de nomes de policiais e professores universitários que seriam supostos adversários do governo Bolsonaro e ligados a movimentos antifascistas. O material circulava em grupos de WhatsApp de integrantes da Polícia Federal (PF), do Centro de Inteligência do Exército (CIE), da Agência Brasileira de Informação (Abin), do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), do Palácio do Planalto e sabe-se lá mais de onde. 

Após ser avisado da situação pelo repórter, que trouxe o caso a público em seu blog no UOL, o acadêmico confessa que pensou em deixar o país. “Eu pensei: ‘não vou esperar acontecer alguma coisa’. Fiquei muito preocupado porque o dossiê circulou por aí e isso não tem volta”, afirma à Quatro Cinco Um. Após uma vida na defesa dos direitos humanos e com a certeza de não ter cometido nenhum crime nem conspirado para tal, estava receoso de ter os seus próprios direitos violados. “Além de não militar em grupo nenhum, não tenho ainda publicações clandestinas nem sou terrorista.” 

Aos 77 anos e com longa vida pública como professor da Universidade de São Paulo (USP) e defensor dos direitos humanos na Organização das Nações Unidas (ONU), na Comissão Nacional da Verdade (CNV) e na Comissão Arns, Pinheiro conta que desistiu de se autoexilar depois de tomar conhecimento do conteúdo da arapongagem. Ele acionou advogados para ir ao Supremo Tribunal Federal (STF) e viu o então ministro da Justiça, André Mendonça, pedir desculpas na TV após a repercussão do caso — o material clandestino foi confeccionado em sua pasta. 

No caso de Pinheiro, o dossiê era amador e tosco. “Sobre mim não tinha nada, só uma entrevista que eu dei tempos antes com críticas ao discurso violento de integrantes do bolsonarismo”, diz. “Mas tinha de gente que era mais completo, com foto, local onde trabalha, esse tipo de coisa. Somos três professores universitários citados no dossiê, mas as vítimas maiores são as centenas de policiais que constam ali. Esses é que vão ter a vida e a carreira ameaçadas por esses extremistas de direita”, afirma. “Claro que foi um escândalo, mas para mim foi no final apenas desagradável.”

Apesar de não estar apreensivo com seu caso em particular, pela baixa qualidade do material de “inteligência” produzido sobre si no ministério, Pinheiro vê uma escalada preocupante em curso e diz que esse tipo de coisa não acontecia desde os malfadados dias do Serviço Nacional de Informações (SNI) do regime militar. “Os críticos da extrema direita e do regime dos Bolsonaro na sociedade civil e até políticos estão sendo intimidados. Não foi só o dossiê, é uma escalada”, acredita. “Existe um plano. Se juntarmos todas as peças, vemos que ele testa, avança, se não dá certo volta atrás, aí tenta de novo, e assim vai indo, devagarinho, tentando suprimir e controlar.” 

Dossiês e rastreamento

Um levantamento da Quatro Cinco Um elaborado por pesquisadores da Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa e do Laut — Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo mostra dez iniciativas do governo federal de vigilância e controle de dados nos dois primeiros anos de mandato. Ao verem essas iniciativas em conjunto e em ordem cronológica, juristas, pesquisadores, legisladores, jornalistas, integrantes de movimentos sociais e cidadãos de forma geral, além de Pinheiro, acreditam que há um esforço governamental para controlar os dados dos cidadãos, para vigiá-los e, quem sabe, puni-los. Ou seja, essas são informações sobre nós — eu, você, caro leitor, e as pessoas à sua volta. O governo tem por objetivo, portanto, controlar e vigiar. 

O dossiê contra os antifascistas é só uma amostra. “Dá para a gente pensar que houve um aumento nessas investidas de vigilância e controle de dados de forma autoritária por este governo em relação aos anteriores”, afirma Izabel Nuñez, coordenadora de projetos de pesquisa na Data Privacy. “Acho que antes a gente não via essa carga contínua do poder federal nesse sentido como agora. Tentam algo, dá errado e recuam, depois tentam de novo, de outro jeito, e não param nunca.”

Existe hoje no Ministério da Justiça um grupo obscuro capaz de rastrear o seu carro pelas cidades e rodovias em tempo real, acessar praticamente todas as suas informações pessoais em posse governamental e criar dossiês secretos sobre qualquer um. O aparato trabalha de maneira paralela à Agência Brasileira de Inteligência (Abin), que atualmente luta para ampliar os seus poderes por meio de parcerias obscuras com órgãos públicos e decretos presidenciais. 

Soma-se ao sistema de “inteligência paralela” revelado pelo próprio presidente Bolsonaro na reunião com os ministros em 22 de abril do ano passado e à presença de um agente secreto no Planalto para azeitar as “relações institucionais” com a sociedade civil. Enquanto isso, o governo federal corre para acessar e centralizar o máximo de informações sigilosas dos cidadãos que conseguir, dos dados dos celulares à carteira de motorista. 

Se por um lado as iniciativas de vigilância indiscriminada e controle de dados sensíveis dos cidadãos ainda são incipientes — e seus piores aspectos têm sido barrados pelo STF após revelações na imprensa —, por outro lado elas apontam para um futuro distópico cada vez mais próximo, no qual todos temos nossas informações acessadas, processadas, controladas e vigiadas ininterruptamente.

Existe hoje no Ministério da Justiça um grupo obscuro capaz de criar dossiês secretos sobre qualquer um

Até julho de 2020, quando a existência do dossiê sobre os antifascistas foi revelada, poucas pessoas tinham ouvido falar da Secretaria de Operações Integradas (Seopi) do Ministério da Justiça. Seu diretor de Inteligência, Gilson Libório, um dos responsáveis diretos pelo dossiê, foi exonerado depois do escândalo. Em decisão plenária, os ministros do STF decidiram mandar o ministério suspender a produção de dossiês por motivações políticas. Na maior parte, o material era composto de uma espécie de lista com nomes, cargos, instituições e locais de atuação, endereços nas redes sociais e fotografias de 579 servidores públicos da área de segurança pública e três professores universitários, entre eles Paulo Sérgio Pinheiro.  

O decreto número 9.662, editado pelo então ministro da Justiça, Sergio Moro, e pelo presidente Bolsonaro em seu primeiro dia de mandato, atribui à secretaria a produção de serviços de inteligência. Assim, seu funcionamento não é submetido ao controle externo do Ministério Público, do Congresso nem de alguma instância da Justiça. A missão do órgão é produzir inteligência para combater o crime organizado. Além disso, como revelou Rubens Valente, ele vem sendo usado com fins políticos. 

Procurado pela reportagem, o Ministério da Justiça e Segurança Pública enviou, por meio de sua assesoria de imprensa, nota em que afirma que “não compete à Diretoria de Inteligência da Secretaria de Operações Integradas a produção de ‘dossiê’ ou instauração de procedimento de cunho investigatório ou inquisitorial contra quem quer que seja”. A nota afirma que a Diretoria de Inteligência da Secretaria de Operações Integradas (Seopi) “é o órgão central do Subsistema de Inteligência de Segurança Pública, que tem como competência o planejamento, a coordenação, a orientação e a supervisão das atividades de inteligência de segurança pública”.

Segundo a nota do MJSP, cabe ainda à Diretoria de Inteligência da Seopi “promover, com os órgãos componentes do Sistema Brasileiro de Inteligência, o intercâmbio de dados e conhecimentos, necessários à tomada de decisões administrativas e operacionais no âmbito do Ministério da Justiça e Segurança Pública”. Essa troca de informações, segundo a nota, é realizada por meio de relatórios de inteligência, que teriam seu sigilo previsto em lei e controle externo pelo Congresso Nacional e pelo Judiciário. “Não são fornecidas informações a respeito da atividade de inteligência a terceiros estranhos.”

Córtex

É na Seopi que também fica o Córtex, uma tecnologia de inteligência artificial que usa a leitura de placas de veículos por milhares de câmeras viárias espalhadas por rodovias, pontes, túneis, ruas e avenidas país afora, para rastrear alvos móveis em tempo real. Hoje conta com pelo 6 mil câmeras espalhadas pelo país, de acordo com declarações do ex-ministro Moro, em cuja gestão foi implantada a tecnologia. O Córtex tem acesso em poucos segundos a diversos bancos de dados com informações sigilosas e sensíveis de cidadãos e empresas, como a Relação Anual de Informações Sociais (Rais), do Ministério da Economia. Assim, agentes de inteligência conseguem acesso a dados cadastrais e trabalhistas como RG, CPF, endereço, dependentes, salário e cargo. 

O Córtex é uma evolução de sistemas de vigilância implantados em governos anteriores. Com o Alerta Brasil, da Polícia Rodoviária Federal (PRF), a PFconseguiu prender Luiz Carlos da Rocha em 2017, apontado como o maior traficante de cocaína do Brasil e um dos dez maiores do mundo. Conhecido como Cabeça Branca e foragido por trinta anos, era um fantasma do qual a polícia não tinha nenhuma pista sólida até que usou as câmeras inteligentes para rastrear carros de familiares do criminoso, como seu irmão e seus filhos. A partir da análise feita com a ajuda de um algoritmo, a polícia deparou com padrões que identificaram outros veículos sempre presentes no mesmo local, dia e hora que os rastreados. Ao seguir e cruzar essas informações no programa, encontrou Cabeça Branca. A história é contada pelo repórter Allan de Abreu no recém-lançado livro-reportagem Cabeça Branca: a caçada ao maior narcotraficante do Brasil (Record). 

“O uso desse tipo de rastreamento e tecnologias de vigilância é vital para investigações atualmente”, afirma o delegado Elvis Secco, coordenador da operação que resultou na prisão de Cabeça Branca. “É uma ferramenta cujo uso pode significar o sucesso de uma operação complexa”, diz o ainda diretor da Coordenação-Geral de Polícia de Repressão a Drogas e Facções Criminosas da Polícia Federal. “Muitas vezes é o link que faltava para corroborar todo um conjunto probatório.” Mas o sistema também pode ser usado para monitorar e vigiar cidadãos, organizações da sociedade civil, movimentos sociais, lideranças políticas e manifestantes em uma escala sem precedentes. Conforme apuração que fiz para reportagem publicada no site The Intercept Brasil em setembro de 2020, cerca de 10 mil pessoas da Abin, do Ministério da Justiça, da PRF, da PF, das Polícias Militares estaduais, da Polícia Civil e até das guardas municipais possuem livre acesso ao sistema. 

Os dados dos alvos ficam armazenados por dez anos, e o índice de acerto nas leituras é de 92%, segundo vídeo de demonstração. Não há lei, decreto, portaria ou qualquer norma oficial pública que regulamente o uso do Córtex por quem possui acesso.

O sistema utilizado para capturar traficantes pode ser também usado para monitorar e vigiar cidadãos

Procurado pela reportagem, o Ministério da Justiça e Seguranca Pública respondeu, por meio de sua assessoria de imprensa, que o sistema Córtex é usado “para cadastro de indicadores de produtividade das ações policiais, operações, modelagem de atividades e ações que permitem o acompanhamento de operações em tempo real. Seu uso e desenvolvimento têm se dado de acordo com o que prevê a Lei nº 13.675/2018, que instituiu o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP)”. Entre as operações em que foi utilizado, o ministério cita a Resguardo (de combate à violência contra a mulher), a Imperium (de isolamento de lideranças criminosas em presídios federais) e a Luz na Infância 5 e 6 (combate à pedofilia), além de ações de segurança nas eleições de 2018 e 2020 e na Copa América de 2019 e do monitoramento nacional dos impactos da Covid-19 na segurança pública.

O ministério afirma que o Córtex tem “emprego exclusivo nas atividades de segurança pública para repressão ao crime organizado e criminalidade violenta” e que “não é integrado com bancos de dados de reconhecimento facial e não utiliza a base Rais [Relação Anual de Informações Sociais] para cruzamento de informações”. O custo mensal da ferramenta é de R$ 20 mil, segundo o ministério, e as atividades realizadas dentro do sistema são auditáveis. 

Todo-poderosa Abin  

Na reunião de abril de 2020, Bolsonaro reclamou com seus ministros das informações de inteligência que recebia pelos canais oficiais: “O nosso serviço de informações, todos eles, são uma vergonha, uma vergonha!”. Falou de um serviço paralelo que lhe serviria bem melhor. “O meu particular funciona. Os que tem oficialmente desinformam. E voltando ao tema: prefiro não ter informação do que ser desinformado por sistema de informações que eu tenho.” 

Nos dias seguintes, reportagens esclareceram que ele se referia a grupos de WhatsApp com policiais e agentes de segurança, assim como informações levantadas e repassadas por assessores. O que parecia bravata, na verdade, forma um panorama bem menos fanfarrão — pelo contrário, bastante sistemático — dos esforços de Bolsonaro para expandir e controlar o aparelho de inteligência estatal.

De fato, antes mesmo de seu início o governo Bolsonaro tentou expandir suas capacidades de controle, vigilância e arapongagem, dentro e fora da lei. Segundo depoimento da deputada Joice Hasselmann (PSL-SP) na Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) das Fake News no Congresso, o vereador carioca Carlos Bolsonaro (Republicanos) quis criar uma espécie de Abin paralela ainda na transição da Presidência de Michel Temer para a de seu pai, no final de 2018. Ela ouviu a história do secretário-geral da Presidência no início do governo, Gustavo Bebianno, defenestrado do círculo próximo de Bolsonaro após uma briga com Carlos. Ele confirmou a história: a ideia do “03” seria monitorar adversários, grampear telefones e montar dossiês. 

A célula de arapongagem incluiria de início três policiais federais chefiados pelo delegado Alexandre Ramagem, depois nomeado diretor da Abin. No começo oficial da gestão, em janeiro de 2019, o chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno, teria descartado de vez a iniciativa. Na CPMI ele negou ter conhecimento do caso, mas o núcleo duro do bolsonarismo nunca desistiu. Procurados pela reportagem por meio de suas assessorias de imprensa, nem o GSI nem a Presidência da República se manifestaram.

Entre agosto de 2019 e junho de 2020, circulou pelo Palácio do Planalto um oficial da Abin, de identidade sigilosa, com a missão de fazer pontes com a sociedade civil e outros entes governamentais. O agente secreto tinha cargo comissionado de direção dentro da Secretaria de Governo, na época chefiada pelo general da reserva Luiz Eduardo Ramos, hoje na Casa Civil. “No Diário Oficial não tinha o nome, só a nomeação e um número de matrícula. Achamos muito estranho e resolvemos investigar”, afirma Gabriel Sampaio, coordenador da Conectas Direitos Humanos. “O sigilo de identidade era incompatível com a função de articulador. Que cargo era esse?” A ONG entrou com uma ação no Tribunal Regional Federal e conseguiu a suspensão da nomeação com uma liminar, depois revertida no julgamento do mérito. Após a derrota na primeira instância, porém, o Planalto cancelou a nomeação e o agente secreto foi afastado do cargo.  

“Sem falar que a natureza desse cargo era muito estranha e nunca foi explicada. Como assim, relações de inteligência com instituições e atores da sociedade civil?”, pergunta Sampaio. Para ele, é difícil mensurar o tamanho do problema. “Existiam até o ano passado cerca de 3 mil militares em cargos comissionados de assessoramento superior no governo federal, parte deles da ativa. Se olharmos a natureza desses cargos, vamos perceber que existe em curso um movimento de ocupação da máquina pública muito importante. Nesse caso conseguimos agir, mas, se fizermos um pente-fino em todas as nomeações e decisões que saem diariamente no Diário Oficial, vamos encontrar outras coisas, muito preocupantes.”

Em 9 de março de 2020, a Abin firmou um convênio com o Departamento Nacional de Trânsito (Denatran) que transfere para si a base de dados de mais de 76 milhões de cidadãos com Carteira Nacional de Habilitação (CNH), ou seja, todos os motoristas habilitados do Brasil à época. Os dados ficam sob a guarda do Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro). A transferência de dados detalhados de milhões de cidadãos para a Abin, feita às escondidas, foi revelado pelo site The Intercept Brasil meses depois da assinatura do acordo de cooperação. O PSB entrou com uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental no STF.

“Estavam ‘raspando’ dados que foram coletados para uma finalidade, que era a carteira de habilitação, e transferindo para uma finalidade completamente diferente”, afirma Ivo Correa, advogado que atuou no caso. “Não era apenas desvio de finalidade dos dados, mas desvio para atividades de inteligência, algo supersensível, sem nenhuma motivação ou transparência”, diz. O advogado explica que isso não encontra respaldo em nenhuma legislação.

Na véspera do julgamento do pedido de liminar pelo ministro Gilmar Mendes, o termo que oficializaria o convênio foi cancelado pelo Ministério da Infraestrutura, ao qual o Serpro é subordinado, mas a ação prosseguiu, ampliada, para questionar o decreto presidencial que sustentava a iniciativa. Outros partidos, entidades e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) entraram na ação como amicus curiae, ou seja, terceiros que ingressam no processo para fornecer subsídios ao tribunal. O caso segue aberto no Supremo. 

Editado em 2019, o decreto 10.046 dispõe sobre a criação do Cadastro Base do Cidadão (CBC) e “estabelece normas e diretrizes para o compartilhamento de dados entre os órgãos e as entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional e os demais Poderes da União”. Um decreto complementar no mesmo ano listou os órgãos da administração pública federal direta e indireta que compartilham informações.

‘O governo não é uno, então um único órgão não pode ter todas as informações de todos’

Por eles são centralizados em um único sistema 51 bancos de dados de órgãos diversos: cadastros de pessoas físicas e jurídicas, imóveis rurais, programas sociais, bases de dados educacionais, de saúde e de passaportes e inúmeros outros organismos governamentais. Basicamente, quase toda informação oficial que existe sobre todos, com poucas exceções, como os dados protegidos por sigilo financeiro. Quem decide se a Abin, por exemplo, pode ter acesso ao banco de dados unificado é um comitê formado exclusivamente por integrantes do próprio governo. “O problema não é a centralização para facilitar o acesso aos dados e melhorar a eficiência da administração pública, e sim a maneira como isso acontece”, afirma Estela Aranha, presidente da Comissão de Proteção de Dados da OAB-RJ. “Dessa forma vira uma devassa. Se isso for em frente é muito preocupante.”

Para ela, do jeito que vem sendo criado, o cbc não respeita a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). “O governo não é uno, então um único órgão não pode ter todas as informações de todos. Os dados devem ser criados e acessados dentro da competência de cada ente. O compartilhamento pode ser feito, mas tem que ter regramento claro e justificativa e ser proporcional à sua finalidade; não é algo indiscriminado”, diz. Enquanto o plenário do STF não decide a questão, o cadastro continua válido e está em construção, com problemas técnicos de incomunicabilidade entre os diversos sistemas. Por isso ainda não foi ativado. 

Metáfora futebolística 

Quatro meses depois da tentativa de avanço no banco de dados do Denatran e ainda em meio à enorme repercussão do caso do dossiê da Seopi contra os antifacistas na mídia, Bolsonaro voltou à carga. Em 30 de julho, assinou o decreto 10.445, que amplia o acesso da Abin a informações diversas, permitindo até que pessoas sem vínculo com a agência central sejam treinadas por integrantes dela e tenham acesso a seus métodos, sistemas e ferramentas. Abria-se nova brecha para a criação de uma Abin paralela. 

Duas semanas depois, por nove votos a um, o plenário do STF limitou a manobra. Proibiu o órgão de ter acesso a dados sigilosos: para isso, deve ter motivação específica e interesse público. Excluiu também os não integrantes da Abin, mas validou o restante da norma. A corte julgou uma ação do PSB e da Rede na qual os partidos alegavam que as mudanças criavam, finalmente, a Abin paralela tão sonhada pelos Bolsonaro.

“Tem-se um cenário em que a ausência de protocolos claros de proteção e tratamento de dados, somada à possibilidade, narrada na [ação] inicial e amplamente divulgada na imprensa, de construção de dossiês investigativos contra servidores públicos e cidadão pertencentes à oposição política, deve gerar preocupações quanto à limitação constitucional do serviço de inteligência”, afirmou o ministro Edson Fachin em seu voto. “Inteligência é atividade sensível do Estado, mas está posta na legislação como sendo necessária. Arapongagem é crime. Praticada pelo Estado, é ilícito gravíssimo”, sentenciou Cármen Lúcia. O líder do PSB na Câmara, Alessandro Molon, comemorou. “Conseguimos impedir que Bolsonaro use a Abin como sua agência paralela de informações. O governo terá que explicar os pedidos de acesso a relatórios de inteligência”, declarou na época. 

Com a validação do decreto, fica mantida a criação do Centro de Inteligência Nacional. Vinculado à Abin, o órgão tem a missão de planejar e executar atividades destinadas “ao enfrentamento de ameaças à segurança e à estabilidade do Estado e da sociedade”, além de implementar a “produção de inteligência corrente e a coleta estruturada de dados”. O que isso quer dizer só podemos imaginar.

De certa forma, dá para dizer que tudo remete àquele fatídico 7 a 1, quando a seleção brasileira sofreu uma humilhação histórica infligida pela alemã no Mineirão nas semifinais da Copa do Mundo de 2014 e nunca mais se recuperou, a exemplo do país como um todo. Foi por causa do Mundial que uma legislação mais arrojada contra o terrorismo, que permitia maior vigilância e amplitude de ações de inteligência por parte do Estado, foi aprovada no governo Dilma Rousseff. Ela também avançou com a criação do Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública, Prisionais e sobre Drogas (Sinesp). 

O Sinesp reuniu em um único sistema, no Ministério da Justiça, informações de bancos de dados estaduais, como boletins de ocorrência, veículos com alerta de furto e roubo, presos e foragidos. Pouco antes da Copa, o governo federal lançou o Centro Integrado de Comando e Controle Nacional (CICCN), que reunia representantes e informações das secretarias de segurança pública das cidades-sede do evento e imagens em tempo real de câmeras viárias e de segurança espalhadas por essas cidades e centros de controle regionais. A maior preocupação do governo era a eventual ação de grupos terroristas, crime organizado e manifestações que pusessem o evento em risco. O ano de 2013 ainda estava fresco na memória. Essa estrutura ficou como legado do Mundial. 

‘Inteligência é atividade sensível do Estado, mas está posta na legislação como sendo necessária. Arapongagem é crime.’

Em 2015, um decreto presidencial sistematizou, ampliou e oficializou o uso do Alerta Brasil — criado pela PRF em 2013, também como um dos investimentos em segurança pública para a Copa. Em 2018, já no governo Temer, foi aprovada a lei que criou o Sistema Único de Segurança Pública. A partir dali, ficou estabelecido o compartilhamento, com a Secretaria de Segurança Pública do Ministério da Justiça, de uma série de bancos de dados, até então isolados, das secretarias de segurança pública dos estados. Quem não cumpre fica sem o repasse de recursos federais para a área de segurança. No mesmo ano, o Córtex entrou em operação.

A LGPD entrou em vigor em agosto de 2020, limitando o compartilhamento indiscriminado de dados pelo poder público e prevendo o uso de dados dos cidadãos para fins de segurança pública, segurança nacional e investigação — mas não de modo indiscriminado. A regulamentação depende de lei complementar ainda em discussão na Câmara. Até lá, as limitações da sanha governista por controle e vigilância avançam — e são decididas caso a caso no STF.

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

Aiuri Rebello

É jornalista.