Laut, Liberdade e Autoritarismo,

A lei do altar

Com a noção de ‘família’, a ex-ministra Damares Alves transmuta a eleição presidencial em uma guerra religiosa

01dez2022

Em um belo ensaio de 2008, Heloisa Starling relê ficções brasileiras tecidas em torno do sertão para refletir sobre o republicanismo no Brasil. Com Euclydes da Cunha, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa, aborda as contradições da modernidade brasileira olhando para um dos seus aspectos cruciais — a produção da ordem republicana — na pena de homens que se dedicaram a confeccionar o real e o ficcional para o público leitor de uma sociedade que era altamente iletrada.

A ascensão de Jair Messias Bolsonaro à Presidência da República põe de um novo modo o problema do lugar do ficcional na produção da ordem política. Sua eleição em 2018 pode ser vista como um efeito do baralhamento do que, em seu Imagined Democracies, Yaron Ezrahi trabalhou como a linha que separa real de ficcional, racional de irracional. Em relação com ela a ciência e a política se autorizaram como instâncias de discursos racionais sobre o real, em contraste com a religião e as artes, que seriam instâncias por excelência de discursos irracionais ou ficcionais. Por um lado, aquela linha criou condições para a plausibilidade da ficção de que ciência e política discorrem sobre ordens que se encontram fora dos próprios discursos; por outro, foi propícia à plausibilidade da ficção de que nem as artes nem a religião produziriam ordem. Um discurso-pregação recente da ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos Damares Alves, eleita senadora pelo Distrito Federal, mostra, no entanto, quão ficcionalizada a realidade pode ser no mundo contemporâneo quando se trata de emprestar plausibilidade a uma fantasia.

No entreturnos da eleição presidencial de 2022, um vídeo da pastora Damares Alves em uma Assembleia de Deus goianiense capturou a atenção das mídias por veicular um relato ao mesmo tempo bizarro e repulsivo. Nele, vestindo uma camisa evocativa do pavilhão nacional com a inscrição “Ore pelo Brasil”, Damares afirma: “Desaparecem ainda no Brasil, irmão, entre 9 e 11 mil crianças por ano. Meu Deus. Para onde vão essas crianças?”. Ao que ela mesma responde: “Irmãos, eu fui para a Amazônia, e Bolsonaro falou: ‘Vamos para a fronteira, vamos fechar essa fronteira’. E fomos. Nós fomos para a Ilha do Marajó”.

Damares afirma que fala ‘à sua igreja’ e que está coberta por seu direito à liberdade religiosa

Sob o “manto constitucional da liberdade religiosa” num dos centros da agromodernidade brasileira, a ex-ministra passa então a contar como crimes sexuais eram praticados contra crianças naquela fronteira aberta: “Marajó faz fronteira com o mundo: Guiana, Suriname, Guiana. Eu vou contar uma coisa para vocês, que agora eu posso falar”. Quais jogos entre ficção e realidade Damares proporá a essa audiência de “irmãos” ao justapor de um modo aparentemente desconexo dados que se pretendem estatísticos, imagens da comunidade imaginária da nação, o testemunho de ação presidencial quase heroica de ir até a fronteira para protegê-la?

Sua narração costura o problema factual do desaparecimento de crianças a práticas monstruosas: “Nós temos imagens de crianças nossas de quatro anos, três anos, que quando cruzam a fronteira, sequestradas, os seus dentinhos são arrancados para elas não morderem na hora do sexo oral”. E acrescenta: “Nós descobrimos que essas crianças, elas comem comida pastosa para o intestino ficar livre para a hora do sexo anal”.

Artífice da ordem

Do altar, Damares urde, assim, elementos verídicos, como dados do Unicef, e elementos ficcionais, como lembranças de rumorosas informações sobre a preparação de crianças para o sexo, na tessitura de uma  história crível e incrível para sua audiência. Saturando o real com o monstruoso, sua história a desloca para um dos nossos espaços abertos. Lá onde desordem social e desordem sexual se conjugam, a narração de Damares faz o presidente aparecer como artífice da ordem e líder político qualificado por sua visão espiritual, que ela autentica.

Nos dias subsequentes, o grupo de juristas Prerrogativas e instituições como o Ministério Público paraense cobraram explicações de Damares e do Ministério de Direitos Humanos. Instada a se explicar, ela esclareceu que tinha se baseado em informações colhidas pela polícia, pelo Ministério Público e em rumores correntes entre os locais. As instituições funcionaram para reivindicar a verdade. Muitos condenaram o uso do púlpito em campanha eleitoral.

Já Damares tinha consciência da incongruência da percepção do que está em disputa na eleição com o que se percebe como próprio à política fora do templo, mas também dentro dele. Por isso ela afirma de partida que fala “à sua igreja”, não em campanha para o Senado, e que sua fala está coberta por seu direito à liberdade religiosa. O direito é fiador da história da ex-ministra na Ilha de Marajó, ponto remoto em que números e documentos fidedignos se misturam a extração de dentes e ingestão de alimentação pastosa no preparo para atos sexuais. Damares fabula para fazer ver um real que se esconde atrás da realidade sensível. Esse real além do real consiste, segundo ela, em desordem e luta espiritual.

Cabe-nos olhar, então, para esses dois efeitos produtivos da história que Damares conta à assembleia

Para a ex-ministra, a desordem tem relação com as fronteiras entre o Brasil e o mundo, práticas sexuais desejáveis e reprováveis, o mundo infantil e o adulto. Todas essas parecem ser, para ela, fronteiras abertas. “Fechar a fronteira” é separar e ordenar. Mas como elas podem ser fechadas? Se as fronteiras abertas na história de Damares são os limites do Brasil com o mundo, do sexo permitido com o crime sexual, do puro com o impuro, podemos perceber que estamos falando de nação e infância, categorias mediadas por uma terceira: família.

Em seu discurso, a fantasia se relaciona com o problema da pedofilia, pelo qual a pastora faz sua igreja ver a complexidade da desordem. O sentido de torná-la visível, contudo, está não só em definir para os presentes uma linha de ação, como também em comunicar a urgência do engajamento naquilo que pode mudar o futuro do país. Nesse contexto, a eleição de Bolsonaro aparece como fiadora da possibilidade de alinhar o cuidado da infância e a reprodução da nação, produção de sujeitos e de ordem sociopolítica.

‘Defensor da família’

Como esse alinhamento aconteceria? O discurso de Damares se insere em uma cadeia de falas e performances que contribuíram para baralhar linhas que, como argumenta Ezrahi, desde o Iluminismo têm possibilitado a postulação do real e a indicação do ficcional. Um dos efeitos desse processo é que Bolsonaro, mesmo sendo construído como um improvável bíblico, aos moldes do rei Davi, personagem que se confunde entre o histórico e o mitológico, se mostra plausível como “defensor da família tradicional”, apesar dos seus vários casamentos e das acusações de misoginia e de pedofilia dirigidas contra ele. Em seu governo, a família tem sido articuladora de práticas discursivas e de políticas públicas e mereceu até uma secretaria dentro do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

Mas, antes dessa renovada centralidade, a família é uma peça destacada no imaginário social, no qual figura como instância de circunscrição das práticas sexuais dos adultos e orientação do desejo das crianças, de cuidado e transmissão de valores, em suma, de domesticação e produção de domesticidade. E, no nosso imaginário, ela diz respeito ao direito e à religião.

Em sua pregação, Damares usa com habilidade a plasticidade da linguagem religiosa para fazer sua igreja ver uma realidade além do real. Do altar, a ex-ministra diz o senso comum quando fala, encenando uma interpelação que seria recorrente e, portanto, previsível: “Pastora, não fica bem misturar política com religião”. Ao que ela responde, vigorosamente: “Nããão, irmãos. Não. A guerra é outra. A guerra é espiritual”. Com isso, Damares dá à disputa eleitoral uma forma reconhecível como religiosa. Essa forma não a torna, contudo, irreal; ao contrário, faz perceber que ela se realiza lá onde as instâncias convencionalmente habilitadas a dizer o real situam o engano e o ilusório.

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

Renata Nagamine

É professora da UFBA.

Aramis Luis Silva

É professor da Unifesp e colaborador do Cebrap.

Paula Montero

É professora titular da USP e autora de Selvagens, civilizados, autênticos (Edusp)