Direito, Laut, Liberdade e Autoritarismo,

A engenharia humanística de Danilo Doneda

Jurista pioneiro na área de direito e tecnologia e um dos mais importantes na área de proteção de dados pessoais deixa grande legado

09jan2023

Aos vinte anos, em 1990, Danilo Doneda embarcou com amigos em uma viagem para o interior de Minas Gerais carregando poucos pertences. Recém-saído de uma escola técnica de engenharia elétrica em Curitiba, o chamado Cefet, o jovem paranaense tinha um perfil muito diferente da maioria de seus colegas.

Carregando Shakespeare na mochila, Danilo achou uma boa ideia ler em voz alta o dramaturgo inglês, enquanto um motorista solidário dava uma carona para ele e seu grupo de amigos. “Danilo conseguia ler o Hamlet no inglês arcaico original, e ainda explicava a história para o caminhoneiro”, conta Paulo Marques, colega de Cefet e hoje professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Para entender a complexidade da natureza humana, a literatura é tão importante quanto o direito

Na turma de engenheiros, Danilo insistia em falar sobre livros clássicos e não apenas sobre arquiteturas de sistemas e fundamentos de física. Queria discutir Goethe, Balzac e Kafka. “Não era vaidade e ostentação, era gosto mesmo”, diz Marques.

A vida na engenharia durou pouco. No início dos anos 90, mudou para a Faculdade de Direito da ufpr e tornou-se um dos pioneiros da área de direito e tecnologia. Apesar de considerar algumas disciplinas entediantes e não se encaixar no perfil da maioria dos colegas, focados em carreiras jurídicas tradicionais, Danilo criou uma relação intelectual com o civilista Edson Fachin, hoje ministro do Supremo Tribunal Federal. Na época, Fachin liderava um grupo de estudos sobre a releitura do direito civil à luz da Constituição Federal. Foi Fachin que despertou a paixão de Danilo pelas questões de autonomia e liberdade.

Literatura e tecnologia

Celebrado como o jurista brasileiro mais importante na área de privacidade e proteção de dados pessoais e falecido precocemente em dezembro de 2022, Doneda seguia de perto os ensinamentos do italiano Stefano Rodotà (1933-2017), uma de suas maiores influências intelectuais: para entender a complexidade da natureza humana, a literatura é tão importante quanto o direito. Mas não só. Além de conhecimento sobre humanidades, o jurista deve estar atento às mudanças tecnológicas e como elas provocam novas dinâmicas de sociabilidade e de conflito.

“Danilo tinha uma sede de viver muito grande, uma paixão pela vida”, me disse Luciana Cabral, companheira por mais de duas décadas e mãe de seus três filhos, Dora, Adriano e Eleonora. Eles se conheceram em um carnaval no Rio de Janeiro, em 1998. “Eu vi aquele cara sozinho, com pinta de turista e perguntei se ele estava perdido. Ele me respondeu: completamente”, me contou Luciana, rindo.

O papo entre os dois rapidamente engatou em literatura e Danilo contou a Luciana que estava lendo Guerra e Paz. “Em dois meses, estávamos morando juntos no Rio de Janeiro”, revelou. Enquanto Luciana trabalhava no Jornal do Brasil, Danilo dedicava-se ao mestrado na Universidade Estadual do Rio de Janeiro onde, sob orientação do jurista Gustavo Tepedino, iniciou uma trajetória de pesquisa sobre direitos da personalidade na sociedade da informação. Juntos, Danilo e Luciana traduziram uma série de textos de Stefano Rodotà, publicados na obra A vida na sociedade da vigilância (Editora Renovar, 2008).

Sua paixão estava nas dimensões políticas proporcionadas pelas tecnologias da comunicação

O percurso de Curitiba ao Rio de Janeiro foi guiado por uma preocupação com o direito civil-constitucional, fortemente influenciado por Pietro Perlingieri. Um direito civil justo e solidário. Seguindo as trilhas de Tepedino, Doneda realizou um doutorado na uerj e passou dois anos em Camerino, na Itália. Uma de suas missões era interpretar o recém-aprovado Código Civil a partir das diretrizes do direito constitucional. Mais especificamente, compreender os chamados direitos da personalidade, com enfoque na relação entre liberdade e privacidade.

Na Itália, ele se aproximou de um debate de vanguarda sobre direitos de proteção de dados pessoais, diferenciando-o da ideia clássica de privacidade como mera não intrusão. Ali, devorou os clássicos da chamada “informática jurídica”: Stefano Rodotà, Vittorio Frosini, Spiros Simitis, Pierre Catala e outros autores. Na esteira de Frosini, Danilo trabalhou com uma perspectiva de liberdades informáticas e direitos relacionados ao controle do fluxo das informações. Em concordância com Stefano Rodotà, Danilo via na proteção de dados pessoais um elemento basilar de contenção de assimetrias de poder nas democracias. Versado em francês, ele incorporou a teoria de Catala sobre a tutela jurídica da informática e um “direito essencial da pessoa sobre os dados que lhe digam respeito”. Em uma série de artigos que antecederam a publicação do livro Da privacidade à proteção de dados pessoais (Renovar, 2006), Danilo lançou as bases de uma reflexão que duraria décadas, atingindo discussões no STF somente nos últimos três anos.

Nesses textos produzidos entre 2000 a 2005, Danilo discutiu as limitações do instituto jurídico do habeas data, construído no período de redemocratização no Brasil, e defendeu a necessidade de uma legislação focada em princípios e obrigações para os controladores de dados pessoais, considerando o risco intrínseco aos direitos da personalidade promovido pela utilização massiva de dados pessoais pelos governos e por empresas privadas. Mais importante: Danilo dedicou sua vida à construção de uma teoria sobre direitos fundamentais, trazendo maior clareza analítica sobre o significado dos direitos relacionados à proteção de dados pessoais (que sempre são centrados nas pessoas e não nos dados em si).

Batalha contra o câncer

A morte precoce de Danilo, aos 52 anos, após uma batalha contra um câncer que durou apenas um trimestre, abalou profundamente a comunidade jurídica e política. Notas oficiais de condolências foram publicadas pelo Superior Tribunal de Justiça, pelo Senado Federal, pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados Pessoais e por autoridades como o ministro Gilmar Mendes do STF. O deputado Orlando Silva, relator da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) afirmou que Danilo “sintetizava a capacidade de diálogo entre política, academia e sociedade civil”. A repercussão foi também internacional: a autoridade italiana de proteção de dados pessoais e a International Association of Privacy Professionals (IAPP) também publicaram notas oficiais de condolências.

Praticamente todas as notas públicas mencionam as contribuições republicanas de Danilo Doneda nos últimos quinze anos, em especial sua batalha para a afirmação da proteção de dados pessoais enquanto direito fundamental, reconhecido não somente em lei federal como na Constituição. Se hoje a legislação brasileira diz que “toda pessoa natural tem assegurada a titularidade de seus dados pessoais e garantidos os direitos fundamentais de liberdade, de intimidade e de privacidade”, deve-se muito a Danilo.

De fato, a história da lgpd se confunde com a própria trajetória de Danilo. Ele esteve presente em todos os momentos marcantes: os grupos de trabalho do Mercosul e as discussões técnicas no Ministério da Justiça no governo Lula, a formulação de um Anteprojeto de Lei na Secretaria Nacional do Consumidor no governo Dilma, o processo participativo de consulta pública de 2015 e a constituição da Comissão Nacional de Proteção de Dados Pessoais no Congresso Nacional entre 2016 a 2018. Danilo também teve papel central em dois casos julgados no STF contra a utilização abusiva de dados durante a pandemia (em 2020) e contra a interoperabilidade de dados no Cadastro Base do Cidadão criado por Jair Bolsonaro (em 2022).

Fora da curva

O sociólogo do direito José Eduardo Faria cunhou o termo “juristas fora da curva” para descrever advogados que pensavam fora da caixinha e que tiveram uma atuação central na vida republicana brasileira, como Raymundo Faoro e San Tiago Dantas. Não é exagero qualificar Danilo como um deles.

Desde criança, os interesses de Danilo combinaram tecnologia e humanidades. “Ele se interessava não pelo hardware, mas pelas possibilidades de comunicação geradas pelas tecnologias”, me contou Paulo Marques, amigo de adolescência.

Seu pai, Altério Doneda, um catarinense de Nova Treviso que havia cursado a Universidade Federal do Paraná, comprou um computador quando Danilo era adolescente. Sua mãe, Marilene, professora de escola pública e viúva a partir de 1985, estimulava o aprendizado do menino prodígio em casa.

Leitor voraz, o jovem cresceu cercado de livros e de música. O primeiro disco que ele comprou foi uma gravação da Nona Sinfoniade Beethoven. Danilo chegou a cursar a Escola de Belas Artes de Curitiba, onde fez estudos de violão clássico. Sua paixão, no entanto, estava nas dimensões políticas proporcionadas pelas tecnologias da comunicação.

No final dos anos 80, Danilo era um usuário do bulletin-board system, conhecido como BBS. O BBS operava em texto ms dos e funcionava como uma internet não gráfica, conectando computadores por um sistema de comunicação. Era utilizado para enviar mensagens simples entre os usuários, criando uma pequena comunidade de nerds no Brasil. Antes da invenção da World Wide Web e da popularização da internet tal como a conhecemos, ele foi o modo central de partilha da comunidade online.

Danilo formou uma comunidade de investigadores de direito à proteção de dados

“A casa do Danilo era um parque de diversões. E ele falava com naturalidade das trocas de arquivos e mensagens no bbs. Ninguém entendia como aquilo funcionava, só ele”, conta Rodrigo Horochovski, amigo dos tempos do Diretório Central dos Estudantes (dce) e hoje professor de ciência política da ufpr. “Ele foi o primeiro cara da nossa turma a ter um e-mail”, reforçou Paulo. “Estava sempre antenado em todas as possibilidades de comunicação”. Pioneiro no uso de blogs, Danilo formou uma comunidade latino-americana de investigadores sobre direito à proteção de dados no início da década de 2000, em um projeto colaborativo chamado Foro Habeas Data.

Bastante politizado, Danilo era fascinado pela resistência antifascista italiana e pelas lutas de redemocratização. Era um fã declarado de Henfil e da turma do Pasquim. Ao assumir a direção do dce de Curitiba, em 1991, tratou logo de organizar a Semana da Cultura com Paulo e Rodrigo. “Ele ajudou a trazer Fausto Wolff e outros jornalistas incríveis. Fomos todos para o bar com eles depois dos debates, conversar sobre política e sobre o Brasil”, contou Marques. No dia 25 de abril de cada ano, seus amigos recebiam mensagens em comemoração do Anniversario della Liberazione, tradicional festa de celebração da resistência democrática contra o nazifascismo na Itália.

“Ele era apaixonado pelo jornalismo e pelas lutas cívicas. Isso nos aproximou bastante”, me contou Luciana Cabral. Ao longo de décadas, Danilo construiu uma relação de confiança e afeto com as principais jornalistas de tecnologia no país, como Paula Soprana, Tatiana Dias e Cristina De Luca. Como democrata convicto, ele sabia da centralidade da colaboração com jornalistas e o papel central desempenhado por esses profissionais na formatação do debate público e nas contestações de práticas abusivas por empresas e governos. De forma amadora, Danilo também atuou como jornalista independente. No seu canal do YouTube (“ddoneda”), é possível encontrar entrevistas conduzidas por ele com figuras como Giovanni Buttarelli e Stefano Rodotà. O assunto, um só: proteção de dados pessoais.

“Poucas pessoas têm uma agenda política, mas o Danilo tinha uma”, me contou Laura Schertel Mendes, professora e parceira intelectual desde 2008. “Nós nos conhecemos em Cartagena, na Colômbia, em um congresso de proteção de dados pessoais e nos perguntamos: vamos fazer disso algo importante?”. Após o encontro e a afinidade intelectual imediata, Laura e Danilo iniciaram um trabalho de base para fazer com que o tema fosse internalizado pelo segundo governo Lula. Na época, Laura fazia parte da equipe da Secretaria Nacional do Consumidor do Ministério da Justiça, instituição que Danilo passou a integrar no governo Dilma.

Seu fascínio por política era notável. Danilo conhecia em detalhes as estruturas do Partido Comunista Italiano, do qual Stefano Rodotà fez parte. Sabia tudo sobre Gramsci e Togliatti e muitas vezes conversamos sobre Enrico Berlinguer, líder do pci durante as décadas de 60 e 70. Ele tinha bastante apreço pelo modo como Berlinguer havia pensado a coalizão entre os comunistas e a Democracia Cristã para a garantia mínima de estabilidade política. Uma vez, no Telegram, recebi uma foto do túmulo de Berlinguer enviada por Danilo. Ele fizera questão de visitá-lo em Roma. Danilo também admirava a experiência política de Allende no Chile e as dificuldades de um progressismo latino-americano sempre ameaçado por ditaduras.

Conexões

O conhecimento sobre política e a vivência obtida no dce podem ter ajudado Danilo décadas depois. Após anos de trabalho e consultas públicas sobre um Anteprojeto de Lei, formulado com Laura Schertel Mendes, Danilo ajudou a arquitetar a “grande coalizão” entre empresas e ativistas que permitiu a aprovação da lgpd em 2018, uma junção inédita de forças políticas conflitantes, que culminou em carta aberta assinada por oitenta organizações, dos mais variados espectros ideológicos. Em uma conjuntura complexa, pós-golpe de Dilma e com um governo Temer pouco afeito à ideia de uma legislação centrada em direitos, Danilo exerceu habilidades políticas, buscando conciliar interesses conflitantes em torno de um texto possível, que agradasse e desagradasse a todos e, ao mesmo tempo, fosse compreendido como legítimo em termos democráticos.

Nos últimos anos, seus canais de conversa no Signal, Telegram e WhatsApp eram ininterruptos. Conectado com a Comissão Europeia, com membros de autoridades de proteção de dados do mundo todo, com a Unesco, com a Ordem dos Advogados do Brasil e com as principais lideranças do mundo jurídico no Brasil, Danilo conseguia antecipar movimentos e pensar grandes questões vindouras, como os direitos digitais das crianças e regulação de plataformas intensivas em ia.

“O pensamento de Danilo não era linear. Ele tinha capacidade de criar relações e estabelecer conexões de coisas aparentemente distantes. Conseguia identificar os pontos de inflexão de um sistema complexo com muita clareza”, conta Yasodara Córdova, amiga e pesquisadora que trabalhou com Danilo na formulação da plataforma de consulta pública da lgpd. “Ele tornava as conversas fáceis pois sempre chegava ao que era essencial, sempre se divertindo”, diz.

O amplo domínio de questões técnicas fazia com que Danilo conversasse com programadores e engenheiros de igual para igual. Demi Getschko, engenheiro eletricista e um dos pioneiros na construção do sistema de governança da internet no Brasil, afirmou que Doneda tinha um “caráter irretocável”, além de deixar um legado enorme para a ampliação de direitos. Juntos, eles promoveram inúmeras edições do Seminário de Proteção à Privacidade e aos Dados Pessoais, organizado anualmente pelo Comitê Gestor da Internet desde 2010. Na época em que Danilo era da coordenação-geral de mercados na Secretaria Nacional do Consumidor, trabalharam juntos na abordagem de combate ao spam no Brasil. Respeitado por juristas e engenheiros, Danilo era visto como uma pessoa ponderada, de excelente conhecimento técnico e um grande compromisso ético.

Inteligência artificial

Nos últimos anos, Danilo estava focado nas discussões sobre decisões automatizadas e um marco regulatório sobre Inteligência Artificial no Brasil. A apresentação do texto final por uma comissão de juristas no Senado Federal, a qual ele integrava, contou com uma justa homenagem a seu trabalho. “Ele estava sempre à frente de todos, mas com uma humildade muito impressionante”, me disse Laura Schertel Mendes, que também integra a Comissão.

Em uma de suas últimas falas públicas, no Senado Federal, Danilo reconheceu a complexidade de uma regulação ampla de sistemas de aprendizado de máquinas, considerando as múltiplas formas de aplicação desses sistemas e a inexistência de um objeto claramente definido. No entanto, como humanista, defendeu a afirmação de princípios e valores humanos, bem como uma abordagem de mapeamento dos riscos produzidos pela Inteligência Artificial nas próximas décadas. Na esteira de Perlingieri e Rodotà, Danilo reconhecia um papel importante para o direito civil nas discussões de Inteligência Artificial.

Em audiência pública realizada em março de 2022, Danilo argumentou que o tema da ia traz à tona metáforas sobre riscos que podem fugir do controle, a “mecanização do elemento humano” e o risco de “erosão da autodeterminação”, devendo existir, sempre, a “centralidade do ser humano na regulação” de modo a não impedir as aplicações de ia.

Como cautela, lembrava Norbert Wiener e suas reflexões sobre o Golem na década de 60: a constante automação exigirá uma nova postura ética para que o feitiço não se volte contra o feiticeiro, considerando a profunda relação entre conhecimento, poder e controle. Uma completa desregulamentação pode levar a cenários catastróficos.

Essa era uma antiga preocupação do jovem estudante de engenharia leitor de Goethe: é preciso agir, inclusive mediante a reinvenção das categorias jurídicas, antes do desespero da inundação e das vassouras enfeitiçadas fora de controle.

Danilo dedicou sua vida à afirmação de novos direitos fundamentais em contexto de automação e novas dimensões de riscos geradas pelas tecnologias da informação. Ele estimulou o surgimento de toda uma comunidade de defensores de direitos digitais, exibindo uma rara habilidade de pensar e criar em conjunto, como mostram as inúmeras coautorias de sua vida e sua participação como conselheiro em diversas organizações civis, como o Instituto Alana e o InternetLab. Como relatou Laura, “nós perceberemos que iríamos muito mais longe juntos”. Danilo não via o mundo pelas lentes da competição individual, mas sim do empreendimento coletivo e comprometido.

Generoso, humilde e bem-humorado, tratava de temas seríssimos com leveza. Danilo soube pensar como um engenheiro de instituições mais humanizadas em um inevitável processo de automações e ubiquidade da computação. Seus feitos serão vividos por nossos filhos, incluindo os seus, que amou profundamente.

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

Rafael Zanatta

É é diretor da Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa e autor de Economias do compartilhamento e o direito (Juruá).