Literatura,

Um homem sozinho

Pensar é o que mais fazem os personagens surgidos da imaginação de Philip Roth

21nov2018

Os personagens que Philip Roth inventou são quase invariavelmente uns sem amigos. Seguem suas vidas sozinhos, pensando e pensando e pensando. É como se estivessem sempre conversando consigo mesmos e, de tanto darem ouvidos às suas ideias, acabam se convencendo de que o ruído que suas mentes produz coincide, de fato, com os sons do mundo. Os romances podem ser longos, pouco importa: esses homens continuam ensimesmados até o momento em que o mundo desaba — num romance de Philip Roth, ele está sempre prestes a desabar — e só então eles param e olham em volta e se perguntam como foi possível uma coisa dessas acontecer, e logo agora, e logo com eles. No mais, quando estão diante de outras pessoas, muito rapidamente param de ouvir o que elas dizem; veem uma boca se mexendo, mas só isso. O próprio cinema mental lhes basta.  

E no entanto, eu mesma passei a adolescência lendo Philip Roth porque me sentia em casa dentro de seus livros. Lá estava eu: só mais ou menos judia, mais ou menos irritada com o mundo, vivendo no Brasil, com os olhos na página e a sensação de estar em casa dentro da cabeça de tantos homens, tantos homens adultos, norte-americanos, à beira do abismo de suas personalidades fechadas. É uma pena que eles não tivessem o que ler enquanto sofriam as tragédias de suas próprias ideias viciadas. Teria sido bom para eles, isso de poder sair de si por alguns instantes. 

“Há chances de que um ser humano inteligente seja alguma coisa além de um fabricante em larga escala de mal- entendidos?”, ressoa a pergunta do final de O avesso da vida (1986). Lendo livros de ficção, porém, não precisamos ser inteligentes. Antes que se assustem com a frase, digo isso porque acredito que com livros experimentamos uma coisa totalmente distinta — dentro deles, podemos pensar ideias que não tivemos que articular, podemos ter conversas interiores com uma voz que não é a nossa.

É justamente o que os personagens de Philip Roth não conseguem fazer — abrir mão da imagem que têm de si mesmos como “homens inteligentes”. Isto é, não exatamente abrir mão da inteligência, mas sim daquilo que acreditam ser o centro de suas personalidades, aquilo que os sustenta precariamente e os confirma diante do mundo (Mickey Sabbath, de O teatro de Sabbath, é, se não a exceção, a versão mais divertida disso). Simone Weil uma vez escreveu que “o homem inteligente que se orgulha da própria inteligência é como o homem condenado que se orgulha de ter uma cela espaçosa”.

Pensando na piscina

Em cada romance de Philip Roth entramos novamente nessas celas e olhamos em volta, até onde podemos. Depois de tudo o que se disse sobre as coisas que acontecem com os corpos dentro de seus livros — tudo o que se repetiu, texto após texto desde que o autor morreu, há cerca de um mês — ficou faltando avaliar o que acontece dentro da cabeça desses personagens. Os livro contêm mais cenas de pensamento do que cenas de sexo, afinal. O pensamento não para de vir nem mesmo durante as cenas de sexo. 

Em seu obituário de Roth, a escritora Zadie Smith conta de uma conversa que teve com ele sobre natação. Disse a ele que, embora gostasse de nadar, ela mesma só conseguia pensar na distância já percorrida, e na distância que ainda faltava. Ao que Roth — que, segundo ele próprio, passava duas horas por dia na piscina de sua casa, no meio do nada em Connecticut — responde: “você quer saber o que eu penso? Eu escolho um ano qualquer. 1963, por exemplo. Então eu penso no que aconteceu na minha vida naquele ano, ou no meu círculo íntimo. Depois eu continuo e penso no que aconteceu em Newark, ou em Nova York. E nos Estados Unidos. E se eu quiser ir fundo, posso começar a pensar no que aconteceu na Europa também e por aí em diante”. E Smith conclui dizendo: “ele amava a ficção”.

Ele amava a ficção: seus personagens podem ser infelizes; sua escrita, porém, não se resume a isso. Ela acontece, acredito, como experimento do que, afinal, é possível fazer com a mente. Um homem sozinho na piscina, convocando continentes inteiros para dentro de si: algo que aprendemos com alguns dos melhores livros de Roth é que o caminho para além de uma mente fechada deverá passar, necessariamente, por dentro da mente.

O que Roth nos diz, para começo de conversa, é que a mente pode fazer muito mais do que olhar para si mesma e se autoparabenizar por ser inteligente. É em Pastoral americana (1997) que essa descoberta se vê traduzida de maneira mais literal. Quando o livro começa, nosso já conhecido Nathan Zuckerman, alter ego do autor, encontra um antigo colega de escola, Seymour Levov. De início, Zuckerman encara Levov, que não encontrava havia cinquenta anos, e se decepciona: “Esse é o frasco que não se pode abrir. Esse cara não pode ser decifrado pela força do pensamento”. E, no entanto, ele continua tentando. Passadas as primeiras oitenta páginas do livro, o narrador sai de cena e as trezentas restantes são a narração de uma história imaginada por Zuckerman do que a vida de Levov pode ter sido nesse meio-tempo. 

Acontece que a história de Levov nos toca. É impressionante, simplesmente, que isso seja possível: nos comovemos com uma história dentro de uma história, imaginada por um personagem imaginário. Os romances de Roth nos lembram de que, no fim das contas, todos os livros que lemos um dia tiveram que acontecer dentro da mente de um autor; todos foram imaginados por alguém — e a ficção é só isso. Tudo isso. E Roth ama a ficção: em 2008 ele mais uma vez alegoriza o gesto do autor e escreve um livro que se passa inteiro dentro de uma mente sedada por morfina, Indignação

Sair de si

Uma última coisa. Roth constrói um caminho para sair de si mesmo e o demonstra no controle virtuosístico da forma. Sua escrita é a de um leitor: ela é continuamente modulada pela voz de outros autores. Há trechos que escapam dessas conversas entre Roth e seus predecessores, e aqui e ali em suas páginas ressoa a voz de Joyce, de Chaucer, Shakespeare ou Faulkner, transformados em algo novo pelo contato com essa nova voz. 

Há algo de otimista nisso, no fim das contas. Por mais que cada uma de suas narrativas nos agarre no estilo específico de seu enclausuramento, as variações mais sutis da prosa de Roth nos dizem que existe um lugar além, onde as coisas permanecem possíveis. Para uma adolescente mais ou menos irritada com o mundo, ler seus livros foi encontrar uma forma de alegria contínua. Aliás, não só para uma adolescente.

Quem escreveu esse texto

Sofia Nestrovski

É mestre em Teoria Literária pela USP.