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O que vem sendo feito pelas 44 mil mulheres encarceradas no Brasil, e por que nossa Justiça ainda mantém mães, gestantes e crianças na prisão

01maio2020

Os presídios femininos foram institucionalizados no Brasil a partir do final da década de 1930. Os primeiros surgiram em Porto Alegre (1937), São Paulo (1942) e Rio de Janeiro (1942). Até então, as mulheres eram confinadas em estabelecimentos prisionais mistos e ocupavam celas especiais em espaços masculinos. Os presídios femininos foram, em sua origem, idealizados pelos penitenciaristas — juristas e médicos empenhados em pensar e concretizar a estruturação carcerária nacional — e administrados pelas Irmãs do Bom Pastor D’Angers — congregação francesa com a missão de recuperar moralmente mulheres desvalidas.

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A função anunciada do cárcere, então, era de recuperação de “mulheres desviantes”, para que voltassem à vida social como “mulheres honestas”, treinadas e disciplinadas para o trabalho, para as funções reprodutivas e para o serviço de Deus: “anjos para o Senhor Jesus”, “braços para o senhor burguês”. As primeiras instituições estabeleciam em seus regulamentos um cotidiano disciplinado. A rotina era preenchida por ensinamentos religiosos, aprendizado de tarefas domésticas, trabalhos “femininos”, como lavagem e costura de uniformes de detentos de ambos os sexos, e momentos de isolamento, voltados à reflexão e à penitência. 
Apesar dos dados desencontrados e da dificuldade em recompor o cenário, diferentes registros do período — artigos científicos, anuários policiais, discursos e documentos prisionais — mostram que a maioria das mulheres presas chegava ao cárcere pela atribuição de crimes contra a pessoa, em geral lesões corporais leves; crimes contra o patrimônio, especialmente furto; e crimes contra os costumes. Também havia um número considerável de prisões por infrações previstas na lei de contravenções penais, como alcoolismo, desordem, mendicância e escândalo. A maioria das mulheres presas no período tinha entre dezoito e trinta anos e, no registro criminal, as ocupações mais recorrentes eram a prostituição e o “serviço do lar” .

Hoje, das mais de 850 mil pessoas presas no Brasil, aproximadamente 44 mil são mulheres. Apesar de elas serem minoritárias no sistema prisional (pouco mais de 5% do total), é possível observar um aumento significativo no número de mulheres presas, em particular nas duas primeiras décadas do século 21. Entre 2000 e 2019, o crescimento de mais de 600% se deveu, especialmente, ao aprisionamento de mulheres associado ao comércio de drogas, que corresponde aos crimes imputados a 50% dessa população. Além destas, em torno de 26% do número total de presas são acusadas ou condenadas de crimes contra o patrimônio, como furto e roubo.
É importante assinalar que a palavra “tráfico” é pouco fiel às situações associadas ao encarceramento provisório ou definitivo das mulheres hoje presas pela imputação do artigo 33 da Lei nº 11.343/2006. O uso corrente do termo “tráfico” equipara na linguagem situações díspares em termos penais. Impede, por exemplo, diferenciar as funções ocupadas na organização do tráfico, ou a quantidade de drogas apreendida.

O aumento significativo de mulheres presas está associado ao comércio de drogas

A massa confinada no sistema carcerário feminino nos últimos vinte anos é constituída por usuárias de drogas e/ou mulheres que ocupam postos precários e arriscados no mercado de substâncias ilícitas. Transporte, embalagem, varejo: o envolvimento de mulheres com o uso e o comércio de drogas reflete o déficit em oportunidades econômicas e status político. Não à toa, estão expostas e são mais facilmente substituíveis: quanto mais se prende, mais indivíduos em condições de vulnerabilidade são recrutados.

O cenário hoje é análogo ao dos anos 1930 e 1940, quando a prisão era reservada a mulheres que trabalhavam e frequentavam as ruas, perturbavam o espaço e a ordem pública e desafiavam o papel social que se atribuía a elas. Nos cárceres femininos estão atualmente aquelas que caminham pelas regiões de consumo de crack ou que, de casa, complementam a renda vendendo drogas, atuando no mercado de trabalho informal ou ilegal.

A escolha repressiva do Estado brasileiro por lidar com a questão das drogas — disciplina legal rigorosa do tráfico, penas altas, equiparação a crime hediondo — impacta desproporcionalmente as mulheres, tendo ainda um viés racial e de classe relevante. Em sua maioria, as mulheres que vivem hoje em situação carcerária são jovens entre dezoito e 39 anos (48%), de baixa renda e com baixa escolaridade. Grande parte das presas tem filhos (74%). A maioria da população prisional feminina é negra (aproximadamente 67%).


Natalia foi libertada em 2017, quando sua filha M., nascida na penitenciária, tinha seis meses, após ação do grupo Mães em Cárcere, da Defensoria Pública [Victor Moriyama]

Velhos fatos, novas questões

Prisão é prisão. Há generalidades nada desprezíveis que se aplicam a todo o universo carcerário e a suas dinâmicas, independentemente do sexo ou do gênero da pessoa presa. Medida em tempo, a pena é desmedida em intensidade. Ao propor um olhar atento ao sexo/gênero, percebem-se as consequências peculiares suportadas por mulheres e o comportamento que se espera delas, em razão do papel social que lhes é atribuído.

A situação da mulher presa no Brasil e suas peculiaridades foram, no entanto, pouco tratadas na academia, na militância e na produção de políticas públicas até o início do século 21. Antes, permaneciam invisíveis. Aos poucos é que se estabeleceu a mirada sobre esses espaços com um recorte de gênero para assim compreender o cotidiano das mulheres que haviam, de alguma forma, rompido com as expectativas sociais de um “dever ser feminino”. Foi um esforço de pesquisadoras, ativistas e das instituições.

Ilustra bem esse movimento o grupo de mulheres da sociedade civil formado por juízas, advogadas e assistentes sociais, o Grupo de Trabalho Mulheres Encarceradas. O GET-Mulheres, no ano 2000, chamou atenção das autoridades e da sociedade para a ausência de visitas íntimas nas penitenciárias femininas de São Paulo e do Brasil. Sob pressão, a Secretaria da Administração Penitenciária do estado de São Paulo (SAP) editou uma resolução regulamentando as visitas. As entidades que trabalham há anos com encarceramento feminino, como o GET-Mulheres, a Pastoral Carcerária e o Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), têm sido fundamentais na denúncia dos efeitos nocivos do encarceramento em massa de mulheres. Mais recentemente, coletivos como Liberta Elas, a Assessoria Popular Maria Felipa e a Associação Elas Existem têm se somado à tarefa de registro e questionamento desse estado de coisas.

Porque minoritária, permaneciam invisíveis as particularidades vividas por essa população

O notório investimento acadêmico de diferentes áreas na produção de conhecimento sobre o tema nas últimas duas décadas deu munição à crítica e à oposição ao encarceramento feminino. Essas pesquisas mapearam as instituições prisionais femininas e o seu funcionamento, elencaram as peculiaridades vividas pelas mulheres, ouviram as suas necessidades, analisaram o impacto social para as detentas e seu entorno. A produção acadêmica ainda verificou o cumprimento ou não de instrumentos como leis e protocolos de saúde, embasando, inclusive, políticas públicas e ações judiciais. Somam-se dados e elaboram-se discursos contra o encarceramento feminino, identificado, reconhecido e reverberado como problema. 

Nesses estudos, são abordados, por exemplo, as deficiências de assistência à saúde e o considerável aumento do risco de contágio de doenças infectocontagiosas, como hepatite, sífilis, tuberculose e agora a Covid-19. Foi constatado o uso excessivo da prisão provisória, responsável hoje por aproximadamente 35% do total de presas, bem como a ausência de vagas em regimes aberto e semiaberto. Tangenciando todas as questões anteriores está a maternidade na prisão: gestação, pré-natal e parto em ambiente prisional, inclusive com a presença de crianças no cárcere. As consequências do aprisionamento de mães ultrapassam os muros, na forma de perda do poder familiar sobre os filhos, destinação das crianças a abrigos ou adoção, ruptura com os laços de afeto e convivência. 

Em 2014, a pesquisa Dar à Luz na Sombra demonstrou que as estruturas adequadas para o exercício da maternidade no sistema penitenciário brasileiro são exceção — e, quando existem, reiteram violações de direitos. Quando é possível permanecer com as crianças, as mães são submetidas a um regime de ociosidade, isolamento e disciplina que agrava a privação de liberdade e interdita o exercício autônomo de direitos sexuais e reprodutivos. Precariedade no acesso à saúde ginecológica e obstétrica, partos desassistidos, violentos e sem permissão para ter um acompanhante, restrições a visitas íntimas: eis algumas das limitações impostas às mulheres encarceradas no Brasil. Todos esses questionamentos puseram em questão a eficácia da privação de liberdade, a legalidade das restrições de direitos no ambiente penitenciário e a própria legitimidade da política punitivista, que é repleta de vieses.

Os sentidos da Justiça penal

No plano legislativo, são diversos os instrumentos legais elaborados para reduzir os danos do encarceramento, garantindo, por exemplo, a convivência de pessoas em situação de prisão e seus filhos. No âmbito internacional, no Sistema ONU, há as Regras de Bangkok, de 2010, e as Regras de Mandela, de 2015, ambas reconhecidas pelo Brasil. Em relação à maternidade, essas regras reforçam a importância da amamentação e da criação de um vínculo entre mãe e bebê, e apontam como dever do Estado considerar o melhor interesse da criança. Incentivam ainda medidas alternativas à prisão para mulheres, reconhecendo os prejuízos causados aos vínculos familiares e comunitários.

No âmbito nacional, além da Lei de Execução Penal, de 1984, e do Código de Processo Penal, de 1941 — que passou por reformas importantes em 2012 no que diz respeito às penas alternativas —, a lei nº 13.257/16 trouxe importantes avanços para as mulheres encarceradas. Conhecida como Marco Legal de Atenção à Primeira Infância, essa lei alterou uma série de dispositivos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e do Código de Processo Penal, regulamentando a prioridade absoluta do cuidado integral de crianças até seis anos de idade. O Marco Legal ampliou as possibilidades de substituição da prisão provisória por domiciliar para as presas provisórias e reforçou a garantia de alternativa à prisão preventiva para gestantes, mães de crianças com até doze anos ou cujas crianças sejam portadoras de algum tipo de deficiência. 

Apesar dos avanços normativos, grande parte do Judiciário brasileiro seguia mantendo presas mulheres gestantes, mães com suas crianças e outras situações semelhantes. A articulação entre pesquisas acadêmicas, ongs e órgãos como as defensorias públicas forneceu o fundamento para que o Coletivo de Advogados em Direitos Humanos (CADHu) pedisse um habeas corpus coletivo em maio de 2017 no Supremo Tribunal Federal, em favor de todas as mulheres submetidas à prisão cautelar no sistema penitenciário nacional, de gestantes, de puérperas e de mães com crianças de até doze anos de idade (e das próprias crianças), pedindo o relaxamento da prisão ilegal ou a sua substituição por domiciliar. 

A via coletiva do habeas corpus refletia a abrangência, a generalização e o caráter sistêmico do problema. Ainda que em tese seja adequada ao caso individual, a decretação da prisão preventiva — em um sistema penitenciário precário e violento — de gestantes ou mães de crianças é vedada pela Constituição. O CADHu chamou a atenção para a aplicação desigual do Marco Legal de Atenção à Primeira Infância. A ineficácia era geral, com exceções em favor de pessoas com acesso privilegiado à justiça. Presa provisória por corrupção, Adriana Ancelmo, esposa de Sérgio Cabral, ex-governador do Rio de Janeiro, obteve substitutição da pena com base no Marco Legal.

As motivações da recusa, ainda que variadas, são regulares e impregnadas de vieses de gênero

O habeas corpus foi concedido pelo STF em fevereiro de 2018, e em parte foi incorporado ao Código de Processo Penal. A substituição, que antes era uma possibilidade, passou a ser imperativo legal no caso de mulheres que não tenham sido acusadas da prática de crimes violentos ou contra os descendentes. 

Dois anos depois desse processo coletivo e interinstitucional de questionamento, observa-se ainda uma renitente recusa por parte dos órgãos públicos e membros do poder Judiciário em atender aos novos limites para a punição de mulheres. O descrédito do que dizem as mulheres detidas em audiências, a dúvida quanto à aptidão para a maternidade (registrada como fundamento de decisões), a censura que reprova o desvio de mulheres-mães — tudo isso  ainda está presente na justiça brasileira, que insiste na prisão.
Os muros de concreto dos estabelecimentos penitenciários são fundados também nas bases mais profundas e longevas do ser mulher em sociedade. A forma como o sistema penal incide sobre essas mulheres revela um programa de criminalização informado por vieses de gênero, raça e classe. Agora, em tempos de pandemia, sob intensa discussão sobre o cuidado e os riscos associados ao encarceramento, elas desafiam como uma ameaça trágica a teimosia das autoridades brasileiras.

Livros sobre encarceramento feminino

Braga, Ana Gabriela Mendes & Angotti, Bruna. Dar à Luz na Sombra — exercício da maternidade na prisão. Resultado de pesquisa empírica em unidades prisionais com espaço para abrigamento de mães e crianças. Editora Unesp. 315 pp. R$ 65,40

Instituto Alana & Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos. Pela liberdade: a história do habeas corpus coletivo para mães e crianças. A obra aborda questões acerca da maternidade na prisão, ressaltando a importância do desencarceramento. Instituto Alana. 216 pp. Gratuito (disponível online)

Varella, Drauzio. Prisioneiras. O livro rememora histórias e vivências dos anos em que o autor de Carandiru trabalhou como voluntário na Penitenciária Feminina da Capital. Companhia das Letras. 296 pp. R$ 44,90

Kushner, Rachel. Mars Club. A caminho da maior casa de detenção feminina dos Estados Unidos, a protagonista desse romance relembra o passado, enquanto aprende as regras de sobrevivência no universo prisional. trad. Rogério W. Galindo. Todavia. 344 pp. R$ 64,90 

Alyokhina, Maria. Riot Days. No coletivo Libertas, onde trabalha, Natalia Domingos costurou balaclavas para embalar este volume de memórias de prisão da integrante do grupo de punk rock russo Pussy Riot, em fevereiro. Trad. Marina Darmaros. Hedra & n-1. 216 pp. R$ 69,90

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

Bruna Angotti

É professora da Universidade Mackenzie.

Nathalie Fragoso

Doutora em direito, integra o Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos – CADHU.