Laut, Liberdade e Autoritarismo,

Mentiras fascistas matam

Ao negarem a letalidade do coronavírus, governantes são responsáveis pela morte e contaminação de várias pessoas

01jun2020

Líderes pós-fascistas, como Jair Bolsonaro, fomentam a doença com suas ações. Não por acaso, o Brasil ocupa um lugar de destaque no placar dos países com maior número de mortes causadas pelo coronavírus. Um planejamento epidemiológico sério teria salvado a vida de muitos brasileiros.

Se fizermos uma análise a partir da perspectiva oferecida pela história das mentiras fascistas, veremos que não há novidade na combinação de morte e inverdades do bolsonarismo, que projeta falsas fantasias em seus inimigos. Os fascistas já haviam matado em nome de mentiras disfarçadas de verdades. Mas, ao contrário do que ocorreu até hoje, desta vez eles matam por omissão, porque não fazem nada ou fazem coisas que levam à contaminação de muitas pessoas.

Bolsonaro não está sozinho. Donald Trump nos Estados Unidos e Viktor Orbán na Hungria, além de Narendra Modi na Índia, mentiram sobre o coronavírus e o usaram como desculpa para promover seus anseios totalitários. Esse novo negacionismo adquiriu formas grotescas. Um exemplo foi o conselho de Trump para que as pessoas tomassem desinfetante. Já Modi culpou um grupo de missionários muçulmanos pela propagação do vírus, ao mesmo tempo que não mencionou encontros similares entre grupos hindus. Orbán utilizou a pandemia para assumir poderes quase ditatoriais, chegando a uma situação encarada por muitos como uma “coronaditadura”. Além do poder para criar e revogar leis, Orbán outorgou a si mesmo a capacidade de decretar a prisão de quem difundisse “verdades distorcidas”. 

O caso de Bolsonaro não é menos nocivo: ele nega diretamente a doença, rechaçando a relevância dos especialistas da Organização Mundial de Saúde (OMS) — órgão que, segundo o “Capitão”, dedica-se a fomentar a masturbação e a homossexualidade entre as crianças —, fabricando realidades alternativas e vinculando manifestações contra a quarentena à necessidade de fechar o Congresso. O mesmo pode ser dito dos pós-fascistas do partido Vox na Espanha ou de Matteo Salvini na Itália. Todos eles fundiram a ciência e a doença às suas fantasias xenófobas e autoritárias, e o resultado final não poderia estar mais longe da realidade.

O estilo e a essência de Bolsonaro, impregnados de violência política, chauvinismo nacional e glorificação pessoal, têm o selo distintivo do fascismo. Mas é a sua manipulação da história e da pandemia global que revela como o seu regime conecta o populismo ao fascismo.

Sobre leões

Bolsonaro tem explorado descaradamente a história como ferramenta de propaganda. Sua decisão de celebrar o golpe de 1964 ecoou fascistas clássicos como Hitler e Mussolini, que, após terem sido designados para conduzir governos de coalizão, destruíram a democracia desde o seu interior. Como governantes, inventaram um passado mítico que reconhecia imperadores e guerreiros heroicos como antecessores de seu governo. Embora com menos grandiosidade que il Duce ou o Führer, Bolsonaro se propunha a vincular seu próprio governo ao de ditadores latino-americanos do passado. Se os líderes fascistas criavam mitos fascistas, Bolsonaro inventava, para então tentar personificar, uma era mítica das ditaduras latino-americanas. Ainda não está claro se ele penderá mais para o populismo ou o fascismo, mas sua política de destruição do Brasil através da negação e da propagação da doença o aproxima dos líderes do fascismo clássico.

A maior parte dos populistas de direita não traduz automaticamente sua retórica radical e suas mentiras extremistas em práticas fascistas ou ditatoriais. É claro que populistas como Trump ou o indiano Narendra Modi implementam políticas de discriminação, violência e desigualdade crescente e, da mesma forma, ampliam o autoritarismo usando a doença como desculpa. Mas, até agora, eles o fizeram sem romper de todo com a democracia. Nem o próprio Trump atingiu o nível de irresponsabilidade calcada em mentiras alcançado por Jair Bolsonaro.

Até agora, as ações mais antidemocráticas do assim chamado “Trump tropical” foram, na maioria, simbólicas. Os ataques a inimigos políticos e ao jornalismo independente não costumam ir além das palavras. Aqui há uma diferença histórica entre o populismo e o fascismo. Os líderes populistas fomentam a retórica violenta e as mentiras sobre si e sobre o inimigo sem respaldá-las com ações violentas. O argentino Juan Domingo Perón, primeiro populista a subir ao poder após a queda do fascismo, em 1945, descrevia-se como “um leão herbívoro”.

Seria Bolsonaro um desses leões pacíficos, dispostos a rugir, mas não a devorar? Seria o caso de Trump? Ou eles são verdadeiros leões do fascismo? Trump tuitou esta afirmação de Mussolini: “É melhor viver um dia como leão do que cem anos como ovelha”. Em toada semelhante, Goebbels descreveu Hitler como “um leão que ruge, grandioso, gigantesco”. A figura do leão significava que lutar e matar eram dimensões cruciais e inevitáveis da política. Essas ideias de guerra e violência estavam intimamente ligadas à fé religiosa que esses líderes exigiam de seus seguidores, valendo-se de símbolos e expressões provenientes de textos e da liturgia do cristianismo para se apresentarem como redentores modernos. Esse era um dos motivos por que estimulavam entre os mesmos seguidores um sentimento de perseguição. 

Bolsonaro se situa na fronteira entre a ditadura fascista e uma forma democrática de populismo

Para alimentar a imagem de salvador ou mártir, Trump se apresenta como o líder mais perseguido da história. Em 2019, em meio à consulta parlamentar referente ao seu impeachment, Trump tuitou, com aprovação, os comentários de um pastor que advertia: “Se os democratas conseguirem destituir o presidente (o que jamais conseguirão), isso desencadeará uma guerra civil, um trauma do qual o nosso país nunca irá se recuperar”. As visões apocalípticas desse pastor são amplamente compartilhadas pelos apoiadores mais fanáticos de Trump. A devoção da “verdade” do líder parece garantir que ela transcenda a ética e o senso comum, justificando até as ações mais ofensivas e aparentemente ilícitas.

Como Trump e seus antecessores fascistas, Bolsonaro vê a guerra civil como um ideal político. Essa concepção da política como cenário para uma guerra pseudorreligiosa, de um tudo ou nada entre a verdade sagrada e as mentiras de um inimigo demoníaco, explica suas convocatórias para que os militares saiam dos quartéis. Para os fascistas, é preferível a violência política à derrota do líder. Mussolini havia dito que “o fascismo crê na santidade do heroísmo”; os seguidores de Bolsonaro o chamam literalmente de “mito” e o consideram um herói de proporções épicas, um guerreiro cristão de valores patrióticos e familiares que nunca deve ser questionado. Mesmo que isso implique contaminar-se com a doença cuja existência ele nega.

Após vencer as eleições em 2018, Bolsonaro disse aos brasileiros: “Temos que nos acostumar a viver na verdade. Não há outro caminho [se quisermos viver na prosperidade]. […] Graças a Deus, essa verdade o povo brasileiro compreendeu perfeitamente”. Ele se identificava plenamente com essa verdade transcendental, porque se dispunha a cumprir a “missão de Deus”. Em pronunciamentos públicos, Bolsonaro costuma repetir o versículo bíblico “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (João 8:32). Bolsonaro se situa na fronteira entre a ditadura fascista e uma forma democrática de populismo. Quando busca celebrar a ditadura e higienizar o passado nazista, ou então negar a pandemia e provocar, através de suas ações políticas e sanitárias, a morte da população, ele se assemelha pouco aos populistas clássicos como Perón e muito mais a Hitler e Mussolini.

Por trás de todos esses casos reside um conceito de verdade profundamente inserido em uma história mais ampla da mentira fascista. O que Bolsonaro acha ser verdade a respeito da pandemia, por exemplo, não passa de simples mentira. Mas essa mentira cria novas realidades, de caráter letal. (Tradução de Bruno Mattos)

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

Federico Finchelstein

Historiador, escreveu Do fascismo ao populismo na história (Edições 70)