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“Fugir não é a solução”

Médica afegã fala sobre estar ou não estar no Afeganistão na retomada do país pelo Talibã

26ago2021

“Estamos sendo levados a acreditar que os soldados americanos estão numa missão feminista para liberar as mulheres no Afeganistão. Então isso significa que o próximo ataque será contra a Arábia Saudita, aliado militar dos Estados Unidos?”

As palavras da escritora indiana e ativista Arundhati Roy são de 2002, mas não poderiam ser mais atuais. E se acrescentarmos países não muçulmanos, como a Índia, onde mulheres são queimadas pelos próprios maridos ou jovens são estupradas diariamente por gangues, ou Uganda, onde o grupo cristão Exército de Resistência do Senhor obriga meninas a ser escravas sexuais, será que todas as mulheres desses lugares serão salvas pelos marines americanos?

Os abusos contra mulheres no Afeganistão não pararam nos últimos vinte anos com a ocupação militar estrangeira. Dados compilados pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2017 mostram que 51% das mulheres sofriam algum tipo de violência física ou sexual. As mulheres afegãs são vítimas de 43 anos de guerras ininterruptas: invasão soviética, guerra civil, o primeiro governo talibã e a guerra ao terror. É verdade que, desde 2002, mais meninas foram para a escola, mais jovens se formaram na universidade, mas, segundo o Unicef, 3,7 milhões de crianças, quase 10% da população, não estudam. Sessenta por cento são meninas.

As mulheres afegãs são vítimas de 43 anos de guerras ininterruptas: invasão soviética, guerra civil, o primeiro governo talibã e a guerra ao terror

A família de Gawhar fugiu do regime talibã quando ela era ainda uma menina. Viveu no vizinho Paquistão até os Estados Unidos expulsarem os talibãs do Afeganistão, depois dos atentados de 11 de setembro de 2001. Uma década depois, a jovem médica se viu forçada a escapar de novo do país, mergulhado na violência dos atentados suicidas provocada pela insurreição dos talibãs e outros grupos radicais contra a ocupação militar estrangeira. Hoje vive em Viena, onde trabalha como médica no maior campo de refugiados da Áustria. É voluntária na associação afegã de Viena e ativista na defesa dos direitos das mulheres na diáspora.

Gawhar está indignada com a hipocrisia dos países ocidentais e a cobertura midiática, que não coincide com o que ouve de parentes e amigos na avalanche de mensagens e telefonemas dos últimos dias.

A Áustria se recusou a parar com a deportação de afegãos. Os políticos na TV, temendo uma nova onda de refugiados, dizem que só vão ajudar os afegãos no Afeganistão. A mensagem é: nós não queremos vocês aqui. A associação onde Gahwar é voluntária recolheu doações para os afegãos que fugiram para Cabul durante a ofensiva dos talibãs, mas não tem como enviar o dinheiro porque os bancos estavam fechados até esta terça desde que o presidente Ashraf Ghani fugiu e os Estados Unidos congelaram as reservas de 9,5 bilhões de dólares do país.

Aqui ou lá?

O jornalista paquistanês Arshad Yusufzai acabou de chegar de Cabul. Ele diz que a cada dia os mais pobres estão lotando os mercados da cidade para vender utensílios, roupas, o pouco que têm em troca de algum dinheiro. Yusufzai também notou que as mulheres estão voltando às ruas, mas em menor número do que antes da chegada do Talibã.

Gawhar, que aos seis anos teve de correr para fugir de um talibã que se enfureceu porque ela não tinha a cabeça coberta, diz que, apesar de todo o frenesi da mídia, do medo que ela e os afegãos em Cabul sentem, de achar que haverá retrocessos na educação de meninas, os militantes talibãs, até agora, não estão se comportando como há vinte anos.

“Os vizinhos dos meus pais dizem que os talibãs entraram em sete ou oito casas do bairro que pertenciam a altos funcionários do antigo governo e levaram armas e carros, mas é bem diferente de vinte anos atrás, quando eles invadiam todas as casas, tiravam tudo de dentro. Eu mesma os vi destruindo televisores, computadores, fitas cassete, vídeos, tudo o que era eletrônico. A maioria das pessoas não está correndo para o aeroporto como as imagens sugerem. Elas estão em casa, apreensivas e, claro, com medo, porque já viveram sob o regime dos talibãs, mas todas dizem que desta vez eles estão se comportando de outra maneira. Se isso vai continuar ou não, a gente não sabe. O que é certo é que eles não vão poder destruir todos os telefones, computadores, até porque eles também estão nas redes sociais. Eles agora estão mais tecnológicos.”

Yusufzai, que cobre o conflito há mais de doze anos, confirma que os talibãs estão agindo de maneira diferente. Na opinião dele, o comportamento da liderança vai ser fundamental, principalmente depois da retirada total das tropas americanas. “Os quadros inferiores dos talibãs seguem cegamente o que dita a liderança; por outro lado, eles estarão sendo pressionados pela mídia, e qualquer deslize de um talibã será considerado uma falha de todo o grupo. Este é o grande desafio deles: mostrar ao mundo que realmente estão falando a sério quando dizem que mudaram”, conclui.

“Eu, se estivesse em Cabul, não sairia”, diz a médica afegã Gawhar

Os pais de Gawhar estavam em Istambul, na Turquia, quando os talibãs chegaram a Cabul, no dia 15 de agosto. O pai é aposentado e a mãe trabalha para a ONU. Uma organização austríaca ofereceu a Gawhar a possibilidade de trazê-los para Viena, mas, em princípio, os dois querem voltar para casa. Estão só esperando os voos normalizarem para tomarem a decisão final.

Quando a jovem assiste às imagens do aeroporto de Cabul, ela se revolta: “O que os americanos querem? Tirar do país os quase 39 milhões de afegãos?”.

“Fugir não é a solução”, diz Gawhar, admitindo que podem acusá-la de dizer isso por estar vivendo na Europa. “Não houve um dia nestes cinco anos em que eu não me arrependesse de ter saído do meu país. Todos os dias eu digo a mim mesma que não pertenço a esta sociedade, todo dia tento me integrar, e não é fácil, é muito preconceito. Vejo as pessoas aqui na associação separadas de suas famílias. Eu, se estivesse em Cabul, não sairia. Se quisermos combater qualquer interpretação extremista do Talibã em relação às mulheres, temos que ser nós, temos que estar lá. Então, se todo mundo que estudou sair, não conseguiremos resistir. E não tenha ilusão: o problema não é vestir ou não burca, o que nós queremos é viver em liberdade, sem ataques suicidas, sem guerra, ter o que comer, poder estudar e trabalhar. Eu já disse para você há dois anos e repito: quando eu puder, voltarei para o meu país, para o Afeganistão.”

Nota do editor: Gawhar é uma das sete personagens do livro O vento mudou de direção: o Onze de Setembro que o mundo não viu, da jornalista Simone Duarte, que está sendo lançado em setembro pela editora Fósforo. A autora preferiu manter o critério utilizado no livro e não divulgar o sobrenome da jovem afegã neste artigo.

Quem escreveu esse texto

Simone Duarte

Jornalista, escreveu O vento mudou de direção: o Onze de Setembro que o mundo não viu (Fósforo).