História,

A outra Independência

Os pernambucanos sustentaram um projeto alternativo de Independência que acabou derrotado, mas nos fala muito sobre o brasileiro que poderíamos ser

05set2019

Para Schneider Carpeggiani

Revolução, por certo, não é a melhor palavra para descrever a maneira pela qual o Brasil se emancipou. A história da Independência – e da fundação do Império – contada ainda hoje do ponto de vista da Corte, isto é, do Rio de Janeiro, nada tem de romântica ou revolucionária. Afinal, por aqui ninguém atravessou os Andes, metido numa guerra de morte em direção a Caracas, como fez Simon Bolívar, em 1813. Tampouco encaramos um conflito prolongado com a metrópole, e não ocorreram enfrentamentos armados em campo aberto para selar a Independência aos moldes da batalha de Ayacucho, em Pampa de La Quinua, no Peru – embora tenha havido sangue derramado na Bahia, no Pará e no Maranhão.

Na verdade, faltou entusiasmo revolucionário ao processo de emancipação comandado pelo Rio de Janeiro — e, como conseqüência, à versão da história que reduz esse processo à construção de um Estado unitário e restringe seus acontecimentos ao triênio 1820-1822. Evidentemente, não há nada de errado numa Independência quase consensual como foi a brasileira; mas talvez persista um travo de decepção na imaginação do país. No fim das contas, sempre existe algum desacerto numa história de emancipação política que carece de um gesto arrebatadoramente revolucionário, de uma boa dose de radicalismo ou ainda de um genuíno colorido libertário.

Passados cerca de 60 anos do Grito do Ipiranga, em 1888, o pintor Pedro Américo recebeu a encomenda de retratar nesse acontecimento a representação maior da Independência e exaltar na figura de dom Pedro a imagem do herói guerreiro, com a espada desembainhada no momento exato em que cria a nação. Todos os brasileiros conhecem o quadro Independência ou Morte, guardado no Museu do Ipiranga, mas a tarefa de Pedro Américo era ingrata — é preciso exagerar na fantasia para imaginar em dom Pedro o mesmo traço libertário de, por exemplo, San Martin, que estava disposto a varrer os espanhóis da parte sul do território americano.

Vista do Rio de Janeiro, a Independência foi pouco mais excitante que a tramitação de um projeto burocrático, confirma irônico o historiador Evaldo Cabral de Mello. E completa: “O que deveria ter sido nossa revolução nacional, a Independência, foi, na realidade, uma contra-revolução, comandada do Rio por um príncipe e empreitada por uma elite de altos funcionários públicos ameaçada na sua própria existência pelas cortes de Lisboa”, argumentou, num artigo publicado em novembro de 2000. O argumento ainda garante muita polêmica entre os historiadores, mas Evaldo Cabral tem munição de sobra.

O espaço para gestos revolucionários era mesmo minguado, e o projeto de autonomia frutificou na combinação de um punhado de interesses contrariados. Havia de fato uma massa de empregados na administração pública desembarcada no Rio de Janeiro quando da transferência da família real, em 1808 — e essa gente se apavorou diante do risco de perder seus cargos a partir de 1820, quando as Cortes portuguesas manifestaram o propósito de reconduzir o Brasil à condição de colônia. A perda da autonomia política e financeira com o retrocesso seria enorme, e isso ameaçava tanto os burocratas do governo quanto os grandes comerciantes fluminenses. Além disso, a máquina publica instalada no Rio de Janeiro gastava a rodo, mas quem pagava as contas eram as províncias.

No quadro de referências em que se criou o sentimento autonomista desses grupos, o projeto da Independência concebeu a ideia de Império e buscou preservar os interesses enraizados em torno do Paço carioca. Significava emancipação política, é claro. Também incluía a criação de um Estado centralizado à escala da América portuguesa, capaz de manter a unidade territorial da antiga colônia, garantir a carga tributária e trazer ao Império a adesão das províncias, ainda que com o uso da força. Deu certo. Mas faltou considerar alguns aspectos decisivos e nossa historiografia costuma se esquecer deles, aponta Evaldo Cabral.

Ao contrário do que defendia José Bonifácio enquanto lustrava o sonho de uma monarquia constitucional gloriosamente implantada no país a partir do Rio de Janeiro, a América portuguesa não alimentou nenhuma vocação incoercível de vir a constituir um vasto Império — a bem da verdade, ao tempo da Independência tampouco existia uma unidade brasileira, por assim dizer; o nome “Brasil” servia para designar genericamente as possessões portuguesas na América do Sul. Tem mais: aspirações autonomistas existiam pelo Brasil afora, esse não era o nosso único projeto de emancipação política, não estava escrito nas estrelas que a Independência desembocaria na formação do Estado unitário, e a centralização nunca foi a solução desejada em todas as províncias.

Em 2004, Evaldo Cabral publicou A outra Independência: o federalismo pernambucano de 1817 a 1824, um livro fundamental para nos fazer entender que, na história, os eventos que ocorreram não tinham necessariamente que acontecer de uma única forma — sempre existe a possibilidade de que as coisas possam ser diferentes do que foram. Num deslocamento certeiro de perspectiva historiográfica, Evaldo trouxe para o centro dos acontecimentos que culminaram na Independência toda a movimentação política que aconteceu bem longe da Corte carioca, nas margens do Brasil, por assim dizer. Seu livro nos conta outra história: a criação de um projeto alternativo de emancipação política, concebido em províncias cujas elites locais queriam autonomia para escapar ao controle tanto de Lisboa quanto do Rio de Janeiro.

Aspirações autonomistas estavam espalhadas pelo território do Brasil, mas apenas duas províncias — Bahia e Pernambuco — tinham realmente condições para articulá-las num formato político consistente, sobretudo por conta de seu bom posicionamento na economia de exportação. Fez diferença no caso da Bahia, contudo, explica Evaldo, a combinação de armas e negócios que garantiu aos portugueses, além da tropa estacionada em Salvador, o controle da quase totalidade do comércio da província; foi essa combinação que refreou o protagonismo autonomista baiano.

Sobrou Pernambuco. A província se transformou no centro da resistência ao centralismo do Rio de Janeiro, forjou um projeto político alternativo ao Estado unitário que se organizava no sul e sustentou um programa de emancipação que não tinha nada de separatista, mas era libertário e radical: federalista, republicano, voltado para a garantia do princípio do autogoverno provincial. Antes mesmo de se completar a ruptura com Lisboa, em 1822, Pernambuco deu início ao ciclo revolucionário, em março de 1817, com a instalação da República, no Recife, e que se estendeu até 1824, quando a província hasteou sua própria bandeira cravejada com representações da República e do federalismo, e conjurou nova revolução: a Confederação do Equador afirmou a autonomia de Pernambuco, reimplantou a República, e convidou os vizinhos do Norte a aderirem — Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Alagoas, Sergipe, Paraíba.

Entre 1817 e 1824, os pernambucanos brandiram o argumento autonomista: uma vez desfeita a unidade do Reino de Portugal, Brasil e Algarves, a soberania revertia às províncias onde, aliás, deveria residir. Cabia a elas negociar um pacto constitucional com a Coroa, no Rio de Janeiro, ou constituírem unidades separadamente sobre o sistema que melhor lhes conviesse.

Às vésperas da Confederação do Equador, Frei Caneca, talvez nosso primeiro pensador republicano e um valente homem público, equilibrou seus escritos entre República e Revolução para alinhavar o formato final do argumento autonomista que Pernambuco estava construindo desde a Revolução de 1817. “Nós estamos, sim, independentes, mas não constituídos”, sustentou categórico, em 1824, repisando o discurso de que a autonomia provincial tinha prioridade sobre a forma de governo: “O Brasil, só pelo fato de sua separação de Portugal e proclamação da sua independência, ficou de fato independente, não só no todo como em cada uma de suas partes ou províncias; e estas independentes umas das outras. Ficou o Brasil soberano, não só no todo, como em cada uma de suas partes ou províncias. Uma província não tinha direito de obrigar outra província a coisa alguma, por menor que fosse; nem província alguma, por menor e mais fraca, carregava com o dever de obedecer a outra qualquer, por maior e mais potentada. Portanto, podia cada uma seguir a estrada que bem lhe parecesse, escolher a forma de governo que julgasse mais apropriada às suas circunstâncias, e constituir-se da maneira mais conducente à sua felicidade”.

E para que não sobrasse ao leitor duvida da justeza do argumento, Frei Caneca desfiou exemplos: “Quando aqueles sujeitos do sítio do Ipiranga, no seu exaltado entusiasmo, aclamaram a s. m. i., e foram imitados pelos aferventados fluminenses, Bahia podia constituir-se república; Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande, Ceará e Piauí, federação; Sergipe d’El Rei, reino; Maranhão e Pará, monarquia constitucional; Rio Grande do Sul, estado despótico”.

A Revolução de 1817 abriu o ciclo revolucionário da Independência, soprou uma aragem libertária no Recife e animou um tipo de sociabilidade pública que se desenvolveu forjada por relações horizontais de reciprocidade e ancorada no patriotismo. Ser patriota, nos termos da Coroa portuguesa, era acusação gravíssima: servia para nomear o rebelde que cometeu o crime terrível de lesa-majestade e, na América portuguesa, tornou-se sinônimo de insurgente a partir de seu uso pelos conjurados nas Minas setecentistas. Ser patriota, no Recife, era isso mesmo: o sujeito era revolucionário. Incluía desfrutar de certo igualitarismo militante entre pessoas que pensavam da mesma forma, bravejar contra o governo imperial num clima de confiança mútua, não passar despercebido entre iguais nem permanecer anônimo na cena pública.

Ser patriota significava também expressar uma identidade e convidar os demais a aderirem a ela. Por exemplo: substituir o castiço tratamento de “vossa mercê” por “vós” com o objetivo de reduzir as distâncias sociais. Aliás, um patriota pernambucano de primeiríssima linha tinha estilo: enfiava-se numa casaca de algodão da terra, apanhava o chapéu de palha trançada com fibra de taquaruçu — um tipo de bambu —, prendia na lapela um ramo de sempre-viva e se metia lépido em quantos protestos e manifestações transbordassem no campo do Erário, onde se realizavam as festividades cívicas e se debatiam os rumos da Revolução. Os patriotas recomendavam às moças e senhoras da cidade a se livrarem de seus empolados penteados inspirados na aristocracia portuguesa, cortarem curtos os cabelos, adotarem a simplicidade austera da República — e a moda pegou no Recife.

O projeto alternativo da Independência terminou derrotado, é verdade. Os personagens dessa história, contudo, nunca pararam de desejar um país e, de muitas maneiras, entre 1817 e 1824, Pernambuco foi um campo aberto de experimentações republicanas, federalistas, autonomistas e até mesmo igualitárias — ainda que, nesse último caso, o debate sobre igualdade estivesse limitado a uma sociedade onde faltou o pensamento antiescravista. Mas o espólio da Independência, que eles nos deixaram e nos pertence de direito, conta uma história sobre o brasileiro que um dia já fomos — e sobre o brasileiro que poderíamos ser.

O Brasil vive atualmente uma crise sem precedentes, o presente é sombrio e existe o risco real de a democracia entrar em colapso. É um bom momento para refletir sobre tudo, questionar e recordar essa história. Para também nós, hoje, nunca pararmos de desejar um país. Não sei o que pensa o leitor. Mas desconfio que esteja passando da hora de ler — ou reler — A outra Independência, de Evaldo Cabral de Mello.
 

Referências bibliográficas
CARIELLO, Rafael. “O Casmurro”. Piauí. Ano 9, n°104, maio 2015. 
MELLO, Evaldo Cabral de. A outra Independência; o federalismo pernambucano de 1817 a 1824. São Paulo. Editora 34, 2004;
MELLO, Evaldo Cabral de. “O mimetismo revolucionário”. Mais! Folha de São Paulo, 19. Nov. 2000. pp. 14-5.
MELLO, Evaldo Cabral de. “Iluminismo envergonhado”. Jornal de resenhas. Folha de São Paulo, 14. jun. 2003. p. 3.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. “O Avesso do avesso ou a história vista pelo outro lado”. In: SCHWARCZ, Lilia M. (org.). Leituras críticas sobre Evaldo Cabral de Mello.  Belo Horizonte; São Paulo, Editora UFMG; Editora Fundação Perseu Abramo, 2008.
TYPHIS Pernambucano, n° XXI, 10 de junho de 1824. In: MELLO, Evaldo Cabral de. (org.) Frei Joaquim do Amor Divino Caneca. São Paulo: Editora 34, 2001. pp. 463-64.

Quem escreveu esse texto

Heloisa Murgel Starling

Historiadora, escreveu Ser republicano no Brasil Colônia (Companhia das Letras).