Ficção,

Diário de São Paulo (ou Diário da Quarentena)

Se o agora é um alvo em movimento, o que acontece quando esse movimento cessa?

21abr2020

Eu comecei a escrever um diário na maluquice que foi esse 2019, em Berlim, onde passei metade daquele ano. Quando voltei para São Paulo, segui com o diário quarentena adentro. Meu plano é juntar esses dois diários em um romance de ficção com publicação ainda este ano, caso existam editoras e livrarias quando isso acabar. Na verdade, esses são os meus primeiros textos inéditos desde meu último romance em 2016. É um trabalho em progresso, e o livro tem o título provisório de “Precariedade magnífica”.

16.03.2020

Desembarco num dos últimos voos de Frankfurt para São Paulo antes que as rotas aéreas entre a Europa e o Brasil sejam interrompidas pela pandemia. No aeroporto, nenhum tipo de checagem médica, apenas a banalidade do controle dos passaportes, a espera das malas, uma mensagem eletrônica nos mandando lavar as mãos ecoando pelos corredores. Há mais caminhões que carros na estrada entre Guarulhos e o centro de São Paulo – e, logo descubro, mais moradores de rua que pedestres nas calçadas desertas. O porteiro me recebe com ar surpreso por trás da máscara cirúrgica, abre a porta do elevador que me leva ao apartamento da Av. São Luis, décimo andar. A primeira coisa que faço, antes mesmo de investigar o que minha ex-mulher deixou ou tirou do apartamento, é ir até a varanda olhar o corredor de velhos arranha-céus cinzentos e a avenida abaixo, o relógio do Hotel Jaraguá flutuando ao fundo. É uma segunda-feira e o Edifício Itália está vazio, assim como os prédios de escritórios ao lado. No Condomínio Louvre, um morador anda de bicicleta ergométrica na varanda.

Aquele estranho hábito, continuar.

18.03.2020

Nada parece tão antigo quanto o passado recente.

23.03.2020

Depois de uma semana de quarentena, vou ao mercado. Nas calçadas, o passo apressado de um ou outro funcionário entre moradores de rua debruçados em lixeiras. No meio das pistas vazias de automóveis, entregadores – de bicicleta, de moto ou a pé – levam grandes mochilas térmicas às costas, cascos quadrados florescentes com logomarcas de iFood, Ubereats e quetais.

Não se vê um branco na rua. Estamos, afinal, onde o passado escravocrata não chegou a transformar-se em História, condenado a repetir-se em desbotadas versões de si mesmo, como numa pintura de Debret ou Rugendas atualizada para o capitalismo tardio do início do século 21. Lembro de um outro pintor que escreveu cartas sobre o Brasil quando esteve por aqui em 1848, com apenas dezessete anos. A frase mais célebre da correspondência de Manet com a mãe: “Pelas ruas veem-se somente negros e negras, pois os brasileiros saem pouco, e as brasileiras, menos ainda.”

Quando chego em casa, desinfeto todas as compras com álcool, deixo os sapatos na porta, coloco as roupas para lavar. Anoitece, da varanda olho para o céu limpo. As estrelas brilham como diamantes suspensos sobre o vazio.

24.03.2020

O presidente falou na TV. Contra todas as orientações médicas, exortou os brasileiros às ruas, chamou a pandemia de “gripezinha”.

Há um trecho famoso do diário de Kafka – só Vila-Matas já deve tê-lo citado uma dúzia de vezes – em que o escritor tcheco meursaultianamente escreve, no dia 2 de agosto de 1914: “Hoje, a Alemanha declarou guerra à Rússia. De tarde, fui nadar.” Mas, hoje, até as piscinas estão fechadas.

25.03.2020

Converso com C., um oceano distante, sobre sua história com o amor que deixou no Brasil. Digo que o coronavírus faz a coisa ficar mais cinematográfica: “Agora é uma pandemia que separa vocês, e sabe-se lá até quando”. Não temos ideia de quando as fronteiras vão reabrir, quando o espaço aéreo vai voltar à normalidade. Talvez nunca.

“É como um filme de guerra”, continuo. “Antes fosse uma guerra”, o amigo responde, “dava pra fugir pra um lugar seguro”. E, em meio ao cataclisma, reclama de saudades e tudo o mais: “As mulheres acabam com a gente. Essa é a única verdade. O resto é religião.”

27.03.2020

Sobre a colunata do ciclópico átrio da Basílica de São Pedro, os olhos opacos de 140 santos de mármore contemplam a oração do Papa para câmeras de TV. Estão sozinhos. É a primeira vez que o Bispo de Roma reza para um Vaticano deserto de fiéis, acompanhado apenas por acólitos e pelo crucifixo trazido da Igreja de San Marcello al Corso. Única peça intacta do incêndio que destruiu a igreja em 1519, ela foi carregada três anos depois pelas ruas, em pedido pelo fim da grande peste que castigava Roma. Meio milênio depois, ainda não estamos imunes à História.

Depois de conceder indulgência plenária a 1,3 bilhão de católicos, sob o som da sirene das ambulâncias (italianas e estridentes, como nos filmes do Pasolini) e dos sinos que dobram sem parar, o Santo Padre beija os ensanguentados pés da estátua, pedindo que o rapaz seminu no calvário não nos abandone. Em Roma, o longo entardecer reflete azul na praça vazia, entre linhas de moedinhas prateadas atiradas pela luz dos refletores no calçamento ungido pela chuva – vejo na tela do computador, até deixar de ver.

Em São Paulo, o céu saturadamente limpo testemunha outro sacramento pela janela. Também solitário.

29.03.2020

Se o agora é um alvo em movimento, o que acontece quando esse movimento cessa? O tempo do confinamento se arrasta entre a memória (de um mundo que talvez não esteja mais lá) e a expectativa (desastre, luto, fuga). O exílio, num apartamento ou numa cidade distante, inverte o sentido das coisas: a vida parece ficção, o mundo que deixamos para trás, um sonho. Tudo é memória – ou quase.

Até ontem, a realidade parecia ser uma paisagem em trânsito, vista de dentro de um carro numa estrada. Ele se move, mas estamos parados dentro dele, no banco de trás, com o focinho colado no vidro. O que se mexe é aquele naco de árvores, edifícios, pessoas, planícies que vai nos deixando em intervalos regulares, uma sequência de instantes que se sucedem: os que não existem mais, os que não existem ainda.

Mas agora a paisagem parou. Meus ciclos circadianos, ou a percepção que tenho deles, se alteraram já em duas semanas. Durmo como não dormia há anos (de dez a catorze horas por noite) e os dias passam mais rápido – muito ao contrário do que poderia esperar, como preso num unheimlich temporal. Acordo, vejo as notícias, faço o almoço, leio, tento escrever – e já é noite, o dia que havia pela frente se esgota, o futuro lançado ao passado. Até que não haja mais que passado.

30.03.2020

Noite agitada: um pesadelo com B. me persegue depois de meses sem esse tipo de sonho. Ela me procura para falar de uma crise com a namorada (ciúmes), compartilhar a informação de ganhos fiduciários (rica do dia para a noite, algo obscuro) e me atualizar de triangulações com potenciais fontes de afeto. Fala comigo como se eu já estivesse morto, e devo mesmo estar. Subimos num jatinho, temos hora para chegar não sei onde, e acordo exaurido fisicamente, sem ar ou espírito.

Poucas horas depois, após meses de silêncio, é a mãe de B. que me procura no inbox, indaga se estou bem, onde estou: “Em São Paulo? Vai continuar aí? Pode ter guerra civil? Não seria melhor ir para o campo?”

Escrevo que vou continuar em casa. Não acho que haja guerra civil, o Brasil é um país contrarrevolucionário e assim continuará. Como sempre, quem vai sofrer é quem mora nas periferias e favelas. Quaisquer revoltas serão sufocadas com a violência usual da PM e do Exército. Para quem mora na Zona Oeste de SP ou na Zona Sul do Rio, não há nenhum perigo. É só ficar em casa, exercendo com plenitude a vocação pequeno-burguesa de cuidar “do corpo e da cabeça”. O problema principal para mim é não saber quando acaba. Minha ex-sogra logo retruca: “E se a favela ficar com fome? Vão assaltar e invadir apartamentos? Fico com medo de vocês aí. B. está nos Jardins, então, sei lá.”

Eu seria um dos primeiros a oferecer minha cabeça numa bandeja pra eles, respondo. Mas, infelizmente, isso não tem como acontecer no Brasil. Vivemos num Estado policial militar. E o controle aumentará. Assim, pode ficar tranquila. 

Ela não me escreve mais.

01.04.2020

D. me telefona, não a vejo desde antes do carnaval. Na última vez que nos encontramos, o mundo ainda estava no lugar, diz. Reclama que quase não tem mais tempo livre, gasta boa parte do dia em chamadas de Zoom, Facetime e House Party. Tem almoçado com amigas, diante do computador com a câmera ligada. À noite se maquia para festinhas a distância. Mas mal começamos a quarentena, e já cansou: “Não é a mesma coisa.”

A conversa é toda o preâmbulo para um convite: “Acho que dá pra encontrar numa praça e ficar a dois metros de distância. Eu posso ir de carro, sem encostar em nada. Pra isso vai servir a porra do meu carro, finalmente.”

05.04.2020

Você vai até a janela, olha para o céu, estica o braço apontando o telefone para cima, fecha o olho esquerdo, olha o céu no quadro do telefone – é o mesmo. Você tira uma fotografia, a examina, volta a olhar para o céu: as nuvens desembestaram a mudar de lugar, o sol talvez agora te cegue um pouco. Mas você estava lá, e por isso publica um instantâneo daquele céu onde não havia nada de especial, apenas o panorama difuso do círculo solar por trás de nuvens em contraluz, visto por uma nesga entre edifícios e antenas de São Paulo. As pessoas vão olhar sua fotografia, cada uma dentro de cada apartamento, e ler seu nome impresso no canto esquerdo sobre a imagem do céu nos cristais dos telefones, e pensar em você, talvez olhando pela janela, talvez o mesmo pavor.

11.04.2020

Os italianos contam que a terceira semana deixa a gente com “a melancolia”, R. escreve. Depois quer saber se tenho uma pessoa de segurança. Pergunto o que é isso. “É um pacto entre duas pessoas que estão sozinhas para que, somente entre elas e ambas estando em isolamento, possam se encontrar.” Seria bom ter um lugar para ir, mas não imagino a quem pedir ou oferecer. Ela não se candidata.

15.04.2020

M. está no Rio, vejo fotos que tira quando sai para andar de bicicleta. Peço que imagine as pessoas largando nuvens de vírus por trás de si, como purpurina no ar. Ela pergunta por que tenho tanto medo? Toma minha prudência como frescura – fazemos parte do clube dos ex-suicidas, afinal. Digo que não sou tão apegado, mas prometi pra minha mãe não morrer antes dela.

16.04.2020

L. me procura, diz que as pessoas estão experimentando um tipo de depressão forçada. Algo que nós, jedis do claustro, conhecemos bem. Ela me escreve, de Berlim: “Nós compartilhamos esse ciclo infeliz de notícias, novas mortes, esse e aquele desastre, regras contra o contágio, e a dúvida se isso vai mudar tudo, e se nada for igual de novo, e o que isso significa? Quantas mortes hoje, as pessoas estão exagerando, quais são as regras, como lavo as mãos, e se eu não estiver lavando minhas mãos o suficiente? E daí nós tentamos nos distrair com filmes, ou pornografia, ou lendo, e ficamos cada vez mais tempo com a tela, sozinhos. Parece demais e não o suficiente ao mesmo tempo.”

18.04.2020

“A vida inteira na frente dos meus olhos”, o clichê de quem sobrevive a um acidente e tenta explicar a sensação de retrospectiva biográfica em fast forward que costuma acompanhar a proximidade da morte. Depois da quinta semana, começo a viver essa sucessão vertiginosa de flashes do passado – só que muito devagar.

Cada dia trancado em casa, um passo montanha acima, de onde inutilmente tentamos contemplar o caminho que nos trouxe até aqui. Sobre um mar de névoa, como naquele óleo. Essa trilha chega fragmentada: instantâneos aleatórios de lugares e pessoas há muito perdidas em alguma gaveta da memória.

Não há qualquer ordem de importância. Surgem detalhes de episódios banais, os importantes me escapam.

Lembro de uma missa católica no Vietnã, com fiéis cantando salmos em vietnamita, segurando velas, lotando a igreja e a praça, lembro do rosto cheio de cicatrizes de um velho garçom que me atendeu no El Fishawi, no Cairo, lembro do cardápio do Cirandinha de Copacabana, onde meus pais me levaram para comer sorvete depois que o Dr. Veiga resolveu meu problema de fimose com um golpe rápido – e algum sabão.

Lembro do desenho que a luz do entardecer imprimia nas paredes no dia da minha mudança para o Copan, do papel de parede do cineminha em Paris onde vi Zabriskie Point em priápicas atividades na primeira fileira com uma bibliotecária, de um casal que usava calças brancas quando fomos naquele bar gay de tango em Buenos Aires, levados pelo Edgardo Cozarinsky, do sapato que eu usava quando, no Parque Lage, levei o grande fora da menina por quem fui apaixonado toda a adolescência, da cor dos envelopes que chegavam na Tribuna da Imprensa com a coluna do Hélio Fernandes, escrita à máquina, que eu tinha que digitar num 386 quando era estagiário do jornal, do som dos ossos esmagados do guaxinim que atropelamos na Umbria, numa estrada entre Arezzo e Umbertide, depois de ver os murais de Piero della Francesca, da camisa do sujeito que não parava de tocar o surdo, fúnebre, na saída do Maracanã quando perdemos para o Fluminense com aquele gol de barriga do Renato Gaúcho, do som estridente de uma fita cassete num data corder transformando-se em código para dentro da caixa de metal de um Gradiente MSX e de uma tela em particular de um adventure chamado Pedra da Gávea num televisor de tubo Philco, da samambaia sobre a rede onde li, pela primeira vez, Coração das trevas, dos corredores da locadora de CDs na Praça Saenz Peña onde alugávamos CDs do Depeche Mode para copiar em fitas Sony-UX – quando tínhamos dinheiro.

E das folhas cor de cobre da amendoeira que o vento trazia pela janela do meu quarto de infância, onde costumava desenterrar um carretel parrudo e traçar teias, amarrando os móveis uns aos outros até que ninguém pudesse passar por ali, o derradeiro laço envolvendo o nó de porcelana da porta, agora fronteira trancada entre eu e o mundo.

Lembro de outros quartos, em outras casas, onde fui feliz com um amor antigo, que me vem de assalto, como um sopro de ar quente no meio de uma dessas tardes tão iguais à ontem. E do quarto enorme de onde vimos os fascistas marchando pela janela enquanto nossa cama convertia-se num porão. Quartos, ainda, onde olimpicamente sozinho abandonei toneladas de horas encarando o teto, mas cujas regras e horários de entrada e saída eram definidas pelo meu desejo – ou equilíbrio dos neurotransmissores, que seja.

Hoje, trancar-se não é mais uma opção, as portas apenas sublinham nossa fragilidade. Do alto da montanha, quando as nuvens se dissipam, finalmente enxergo um labirinto.

Quem escreveu esse texto

J. P. Cuenca

Escritor e cineasta, é autor de O único final feliz para uma história de amor é um acidente (Companhia das Letras).