Filosofia,

A conjuração dos losers

E se o vírus foi criado em laboratório para que todos os losers do planeta pudessem recuperar seus ex?

29mar2020

Fiquei doente em Paris na quarta-feira 11 de março, antes do decreto do governo francês que determinou o confinamento da população, e assim que saí do leito, no dia 19, pouco mais de uma semana depois, o mundo tinha mudado. Quando me deitei, o mundo estava próximo, coletivo, viscoso e sujo. Quando saí do leito, tinha se tornado distante, individual, seco e higiênico. Durante a doença, eu não conseguia avaliar o que acontecia do ponto de vista político ou econômico, pois a febre e o desconforto se sobrepunham à minha energia vital. Ninguém é filósofo enquanto a cabeça está explodindo. De vez em quando eu olhava as news, o que só aumentava o mal-estar. A realidade era indissociável de um sonho ruim, e a primeira página dos jornais era mais desestabilizante que o pior pesadelo causado pelos meus delírios febris. Durante dois dias inteiros, decidi não abrir nenhum site na internet, como uma prescrição anti-ansiedade. É a isso e ao óleo essencial de orégano que atribuo a minha cura. Não tive dificuldade em respirar, mas tive dificuldade em pensar que continuaria a respirar. Não tinha medo de morrer. Tinha medo de morrer sozinho. Entre a febre e a ansiedade, pensei que os parâmetros de organização do comportamento social tinham mudado para sempre e não poderiam nunca mais ser modificados. Foi o que senti, com a força de uma evidência que me atravessava o peito, à medida que a minha respiração se tornava mais fácil. Tudo permaneceria para sempre nessa nova forma que as coisas tomaram. A partir de então, teríamos acesso a formas de consumo digitais sempre mais excessivas, mas os nossos corpos, os nossos organismos físicos, seriam privados de todo contato e de toda vitalidade. A mutação tomaria a forma de uma cristalização da vida orgânica, de uma digitalização do trabalho e do consumo, e de uma desmaterialização do desejo.

Os que eram casados a partir de agora estavam condenados a viver confinados 24 horas por dia com a pessoa que esposaram, não importa se a amassem ou a detestassem, ou melhor, os dois ao mesmo tempo, o que, diga-se de passagem, é a coisa mais comum: o casal é regido por uma lei da física quântica segundo a qual não há oposição entre termos contrários, mas por uma simultaneidade de fatos dialéticos. Nessa nova realidade, aqueles dentre nós que perderam o amor ou que não o encontraram a tempo, ou seja, antes da grande mutação do Covid-19, estávamos condenados a passar o resto da vida completamente sós. Sobreviveríamos, mas sem toque, sem pele. Os que não ousaram dizer a alguém que amavam que o amavam não poderiam se juntar a ele, nem mesmo se fosse possível expressar o seu amor, e deviam agora viver para sempre na espera impossível de um encontro físico que não acontecerá nunca. Os que escolheram viajar ficarão para sempre do outro lado da fronteira, e os burgueses que foram para a praia ou para o interior para passar os dias de confinamento em suas agradáveis residências secundárias (tadinhos!) nunca mais poderão retornar à cidade. As casas deles seriam requisitadas para receber os sem-teto que, por sua vez, à diferença dos ricos, viviam permanentemente na cidade. Tudo seria fixado sob a forma nova e imprevisível que as coisas tomaram depois do vírus. O que parecia ser um encerramento temporário seria prolongado pelo resto da vida. Talvez as coisas mudassem de novo, mas não para aqueles que entre nós tínhamos mais de quarenta anos. Era isso a nova realidade. A vida depois da grande mutação. Perguntei-me, então, se valeria a pena continuar a viver assim.

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A primeira coisa que fiz ao sair da cama depois de ficar doente com o vírus durante uma semana tão imensa e estranha quanto um novo continente foi me fazer esta pergunta: em quais condições e de que maneira valeria a pena continuar a viver? A segunda coisa, antes de encontrar uma resposta para esta pergunta, foi escrever uma carta de amor. De todas as teorias da conspiração que li, a que mais me seduziu foi aquela que diz que o vírus foi criado por um laboratório para que todos os losers do planeta pudessem recuperar os seus ex, sem por isso serem verdadeiramente obrigados a reatar com eles.

Salpicada com o lirismo e a angústia acumulados durante uma semana de doença, medos e dúvidas, a minha carta a Ex não era apenas uma declaração de amor tão poética quanto desesperada, mas era principalmente um documento vergonhoso para quem assinava. Mas, se as coisas não podiam mais mudar, se aqueles que estavam longe não pudessem nunca mais se tocar de novo, que importância teria o fato de ser assim tão ridícula? Que importância haveria agora em dizer à pessoa amada que você a ama, sabendo que muito provavelmente ela já esqueceu você, ou substituiu, que de qualquer maneira você não a puder rever nunca mais? O novo estado de coisas, em sua imobilidade escultural, estabelecia um novo grau de what the fuck, até de seu próprio ridículo.

Escrevi aquela linda e horrivelmente patética carta à mão, pus num envelope branquíssimo e escrevi nele, com minha melhor caligrafia, o nome e o endereço de Ex. Me vesti, pus máscara, luvas e sapatos, os quais havia deixado na porta, e desci até a entrada do prédio. Ali, seguindo a regra do confinamento, não saí à rua, mas me dirigi até o lixo, no pátio interno. Abri a caçamba amarela e joguei a minha carta a Ex – era de papel reciclável. Subi novamente, devagar, até o meu apartamento. Deixei os sapatos na porta. Entrei, tirei a calça e guardei numa sacola de plástico, retirei a máscara e deixei na varanda, para arejar, tirei as luvas e joguei no lixo, lavei as mãos durante dois intermináveis minutos. Tudo, absolutamente tudo, estava fixado na forma tomada depois da grande mutação. Voltei ao meu computador e abri o meu correio eletrônico: e lá estava uma mensagem de Ex, intitulada “Estou pensando em você durante a crise do vírus”. (Tradução de Paulo Werneck)

 

Quem escreveu esse texto

Paul B. Preciado

Publicou a coletânea de ensaios Um apartamento em Urano (n-1).