Cultura, Estado repensado,

Um tesouro mergulhado no pesadelo

Casa de Rui Barbosa celebra cinquenta anos do arquivo-museu de literatura, lar de acervos inestimáveis, enquanto enfrenta gestão bolsonarista

01jan2023

O fim de 2022 teria motivo para ser festivo na Casa de Rui Barbosa. Uma das principais joias da instituição, o Arquivo-Museu de Literatura Brasileira (AMLB), completou cinquenta anos em dezembro. Uma exposição com objetos, documentos e manuscritos de autores como Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de Moraes, Clarice Lispector, Pedro Nava, Lúcio Cardoso, entre outros, foi inaugurada no começo de dezembro e fica aberta até fevereiro de 2023. Mas a mostra no hall do prédio anexo da entidade é um retrato simbólico da casa em tempos de apagar das luzes do governo Bolsonaro: além de ser modesta se comparada à importância do acervo, ela acaba ofuscada por um cenário de instabilidade institucional sem precedentes.

Em pouco mais de três anos, figuras-chaves da instituição foram exoneradas de cargos de liderança, processos judiciais se multiplicaram, setores inteiros foram extintos, equipes foram enxugadas e redes sociais, controladas. À frente das decisões estava Letícia Dornelles, que assumiu a presidência da Casa de Rui Barbosa em outubro de 2019, por indicação do pastor e deputado Marcos Feliciano (a quem chamou de “querido irmão”). Como se tornaria uma espécie de praxe nas nomeações para instituições culturais federais nos últimos quatro anos, o governo empossou uma desconhecida dos pesquisadores, que não tinha mestrado e doutorado nem experiência administrativa. No currículo, Dornelles trazia histórico como repórter de TV, roteirista de novela e autora de livros infantis.

“O fato de ela não ser uma acadêmica não necessariamente a transformaria numa presidente ruim. Ela poderia ser boa de gestão, mas não era nem uma coisa nem outra”, observou o sociólogo José Almino, que presidiu o órgão entre 2003 e 2011.

Em pouco mais de três anos, a rotina do órgão, em geral pacata, virou uma sucessão de sobressaltos

Dornelles se mostrou leal à Secretaria Especial da Cultura e ao Ministério do Turismo ao longo do mandato. Foi demitida em 13 de dezembro de 2022, dezoito dias antes do fim do governo Bolsonaro, após receber parlamentares da transição que visitaram a entidade. A eles, fez críticas à gestão de Mario Frias (secretário entre junho de 2020 e março de 2022). “Ela disse que foi boicotada pelo Frias, e que só conseguiu se manter no cargo graças à pressão de ‘amigos evangélicos’”, contou Jandira Feghali, deputada que estava presente no encontro.

A ex-presidente também chamou de homofóbico e misógino seu diretor-executivo, o militar Carlos Augusto Corbage Rabello, que assume seu lugar (e foi exonerado no primeiro dia de governo Lula). Em discurso na abertura da exposição sobre o AMLB, Dornelles se queixou de um contingenciamento de verba e disse que tirou dinheiro do próprio gabinete para pagar bolsistas. Aos jornais e pelas redes sociais, ela disse que foi perseguida e que recebeu ameaças veladas de seu ex-superior. Como os antigos chefes, mandou recados pelo Twitter: “Trabalhei com Memória e Informação. Aprendi a arquivar o que importa. Consciência tranquila. Colherei flores. Honrei e protegi a Fundação e o legado de Rui”.

O sonho de Drummond

A instituição nasceu de fato para cuidar do legado de Rui Barbosa. Foi inaugurada pelo presidente Washington Luís em 1930 na antiga residência do político e jornalista, no bairro carioca de Botafogo. Ela passou a abrigar um museu e uma biblioteca com mais de 30 mil itens. Com o tempo sua missão se expandiu. Presidido entre 1939 e 1993 pelo historiador Américo Jacobina Lacombe, o órgão ganhou um centro de pesquisa em 1952 e foi alçado a fundação em 1966. Seis anos depois, Lacombe conseguiu realizar um sonho de Carlos Drummond de Andrade: abrigar ali o primeiro espaço do país voltado para a memória de seus escritores.

Drummond escreveu sobre esse sonho em uma coluna para o Jornal do Brasil em 11 de julho de 1972. O poeta ponderava que a Biblioteca Nacional e outras instituições públicas “possuem valiosas coleções de manuscritos de nossos autores”, mas não havia um órgão especializado para preservar a tradição escrita brasileira. A semente revelada ali já estava sendo cultivada há algum tempo, nos “Sabadoyles”, neologismo criado pelo poeta Raul Bopp para dar nome às reuniões semanais de escritores na casa do bibliófilo Plínio Doyle. E germinaria cinco meses depois de “Museu: fantasia?”, a tal crônica descrita acima. Em dezembro de 1972 o AMLB abriu as portas, tendo Doyle como diretor.

Drummond ainda escreveria mais duas colunas sobre o tema. Em 4 de janeiro de 1973, com o arquivo recém-aberto, celebra o fato de o espaço já contar com treze acervos “a provas de insetos, heranças e indiferenças”. E em junho de 74, tece loas a Plínio Doyle, que estava trabalhando de graça, e exalta a coleção: “Você entra regularmente poluído e fatigado, mas lá dentro se restaura e sente a magia da criação literária”.

Drummond sonhava com um órgão especializado em preservar a tradição escrita brasileira

Passados cinquenta anos, o AMLB é guardião de 148 acervos pessoais de escritores brasileiros. Há ainda um conjunto de dossiês sobre setecentos autores e pastas de recortes de jornais. A coleção museológica tem cerca de 2 mil objetos, como os óculos de Drummond, a máquina de escrever de Clarice Lispector e pincéis de Pedro Nava — todos esses disponíveis na exposição sobre o arquivo.

Professora da faculdade de Letras da puc, curso que tem convênio com o AMLB e manda bolsistas há décadas para trabalhar com os manuscritos, Marília Rothier conta que o pioneirismo do acervo foi fundamental para que novas experiências de arquivamento se espalhassem pelo Brasil. “E segue sendo importante no Rio, onde nenhuma universidade mantém um arquivo de literatura, como o ieb na usp e a ufmg”, ponderou a acadêmica, lembrando ainda que, quando o Instituto Moreira Salles abriu um arquivo de literatura, contou com a ajuda dos arquivistas da Casa de Rui Barbosa para treinar seu pessoal.

Drummond não poderia vislumbrar que, décadas depois, aquele inestimável patrimônio, que deveria ser protegido pela gestão do Estado, acabasse submetido a politizações de governos, desmontes institucionais e gestores que não necessariamente priorizem a preservação e valorização da herança cultural brasileira.

Três pilares

Se o clima andou pesado nos corredores da fcrb nos últimos anos, pode-se dizer que o AMLB foi mantido blindado de polêmicas. Talvez por sua indiscutível relevância, talvez pela personalidade de sua diretora, Rosângela Rangel. Servidora da casa há 34 anos e desde 1984 trabalhando com aquele acervo, Rangel sempre evitou se envolver em conflitos. “Todos têm direito de se manifestar. Mas desta porta para dentro temos muito o que fazer, ainda mais com a demanda reprimida após a pandemia”, disse ela em entrevista à época da abertura da exposição. Ao apresentar o AMLB, Rosângela prefere focar nas boas notícias, como uma verba acima da média para digitalização, recebida em 2021, que garantiu o processo para dezesseis arquivos e quatro coleções.

Entretanto, para muitos pesquisadores de dentro e de fora da Casa de Rui Barbosa, é difícil ver com otimismo a situação dos acervos da entidade. “Um arquivo está vivo quando tem três pilares se retroalimentando: a qualidade do conteúdo, as condições de guarda asseguradas e uma boa repercussão”, observou Ana Pessoa, pesquisadora da instituição que esteve, entre 2003 e 2015, à frente do Centro de Memória e Informação, onde o AMLB está alocado.

No caso do acervo de literatura brasileira, a qualidade do conteúdo é inquestionável. As condições de guarda inspiram cuidados: boa parte do material está no subsolo, onde obras de acondicionamento foram realizadas entre 2004 e 2006, mas precisam de manutenção constante. Dornelles afirma que investiu em brigadas de incêndio, câmeras de segurança e reformas pontuais. O plano mais importante nesse sentido não progrediu durante seu mandato: um prédio novo para abrigar o acervo e exposições em condições ideais ainda não saiu do papel, apesar de cerca de R$ 30 milhões ter sido garantido por gestões anteriores através de edital do Ministério da Justiça. Impasses técnicos entre a construtora responsável e a entidade atrasaram a obra. No dia 29 de dezembro, o Conselho Gestor do Fundo de Defesa de Direitos Difusos decidiu não prorrogar o período de vigência da verba e enviar cópia do processo para o Ministério Público Federal. Uma reforma elétrica, alardeada em entrevista por Dornelles em 2020, também não aconteceu, porque a Fundação Darcy Ribeiro, proponente do projeto, cancelou o apoio financeiro pedido ao bndes para este fim. 

Terceira base do tripé apontado por Ana Pessoa para a relevância de um arquivo, a “repercussão” talvez seja o aspecto mais delicado em termos de impacto da gestão bolsonarista, apesar de não ser tão palpável. “A partir do momento que a instituição perde seu viço para o olhar externo, o acervo acaba prejudicado indiretamente”, disse a pesquisadora. “A casa sempre foi conhecida por eventos literários relevantes. Essa vitalidade irrigava os acervos”.

Enquanto esteve no cargo, Dornelles deixou clara a intenção de comunicar uma imagem mais popular para a casa. Promoveu eventos “fora da curva”, como um debate sobre o liberalismo de Ronald Reagan e Margaret Thatcher — na época, argumentou que ambos são “ídolos de muitos brasileiros e políticos atuais”. Tentou emplacar um evento sobre astrologia, que acabou cancelado diante da reação negativa na imprensa.

Mesmo em temas caros à instituição, como os de mesas redondas que a jornalista comandou sobre Clarice Lispector, Cora Coralina e Mario Quintana, houve “nível constrangedoramente escolar”, nas palavras de José Almino. Em seu blog, Dornelles diz que ela mesma criou palestras e exposições, apesar de não ser sua função, porque “houve pouca colaboração da área criativa”.

Sua decisão mais drástica, e de maior repercussão, veio nos primeiros dias de 2020. O Centro de Pesquisa da instituição teve seus responsáveis exonerados dos cargos de chefia. Apesar de seguirem como pesquisadores, foram destituídos nomes que sempre foram muito reconhecidos por seus pares: Antonio Herculano (diretor do centro), José Almino (setor ruiano), Flora Süssekind (Filologia), Joelle Rouchou (História) e Charles Gomes (Direito). A presidente nunca havia conversado com os acadêmicos.

Dornelles disse que as exonerações foram determinadas pelo então secretário de Cultura, Roberto Alvim — alguns dias depois, ele próprio seria demitido após copiar um discurso nazista. “O governo pediu que o setor não tivesse tanto chefe”, contou. Os preteridos argumentaram que acontecia o contrário: com o esvaziamento dos concursos para a área de pesquisa, a situação estava mais para “pouco índio” do que para “muito cacique”.

A reação da comunidade acadêmica foi forte, por considerar que a medida foi uma retaliação às críticas que os servidores fizeram à escolha de Dornelles para o cargo. Um protesto chegou a interromper a circulação na rua São Clemente, já que os manifestantes encontraram os portões da casa fechados. A crise gerou um clima de incerteza que impactou inclusive representantes de escritores com acervos que integram o AMLB. “Fiquei temeroso”, disse Rafael Cardoso, representante do arquivo de Lúcio Cardoso. “Cheguei a pensar que, dependendo da situação, poderia ter que verificar as medidas jurídicas necessárias para tirar o material de lá. Resolvi manter em respeito aos funcionários, que são muito dedicados e sempre fizeram o impossível”.

Três anos depois das exonerações, Dornelles segue dizendo que a reação foi exagerada: “Ninguém foi demitido. Nunca me meti nas pesquisas. Fizeram questão de criar antipatia da sociedade em relação à minha gestão”, disse ela. A frase mostra uma incompreensão, deliberada ou não, sobre o papel do setor que é o coração da Fundação Casa de Rui Barbosa. “A força do centro de pesquisa está em sua autonomia crítica, com um programa de pós-graduação próprio e uma estreita relação com os acervos reunidos ali. Temo que o esvaziamento transforme a instituição apenas em um museu-casa, e encerre a sua atividade-fim que é exatamente a pesquisa”, comentou uma acadêmica que preferiu não ser identificada.

O temor não é à toa. A própria fundação chegou a ficar sob risco. Em maio de 2020, foi revelada uma proposta para extingui-la, transformando a Casa de Rui Barbosa em um museu vinculado ao Instituto Brasileiro de Museus (Ibram). Dois meses depois, a ideia foi arquivada pelo governo.

Mas o clima de desmonte não parou por aí. O Centro de Proteção a Refugiados e Imigrantes (Cepri), serviço jurídico gratuito para esses cidadãos alocados na cidade, foi extinto. O Setor de Políticas Culturais foi desidratado com a saída da pesquisadora Lia Calabre da instituição. No site, o Repositório Rui Barbosa de Informações Culturais ficou fora do ar por meses.

Aposentadorias em massa

Em termos de pessoal, os quatro anos de governo Bolsonaro tiveram um forte impacto na Casa de Rui Barbosa. “A instituição perdeu pessoas importantes de seu quadro funcional durante essa gestão desastrosa, marcada por incompetência, perseguição e ódio”, resumiu Rachel Valença, ex-pesquisadora da instituição que, em 2019, era a indicada pelos servidores a assumir a presidência da entidade, quando Dornelles foi escolhida.

Quatorze servidores da instituição se aposentaram neste período — entre eles, Flora Süssekind, uma das críticas literárias mais importantes do país, e José Almino, que chegou à idade-limite de 75 anos em 2021, mas seguiu como um dos mais combativos críticos à gestão de Dornelles. A casa, que tinha 107 servidores em janeiro de 2020, acabou 2022 com 83. Ao longo de três anos, processos judiciais se sucederam, a maioria deles de investigação interna e já arquivados. Presidente da associação de servidores, Leandro Jaccoud encara, junto com José Almino e outros dois servidores, uma ação por suspeita de difamação. “Fui intimado a depor na Polícia Federal. Até então eu só tinha entrado em delegacia para fazer boletim de ocorrência por perda de documento”, contou Jaccoud.

A instituição, que tinha 107 servidores em janeiro de 2020, acabou 2022 com 83

Na mão inversa, a associação entrou com uma denúncia no Ministério Público sobre o controle das redes sociais da instituição. “O Twitter foi desativado, no Instagram críticos eram bloqueados, e os comentários foram desabilitados, ferindo o direito do público de se comunicar com o órgão por meio das redes”, explicou Jaccoud. Segundo Dornelles, a medida era ordem da Secretaria de Cultura: “Eles controlavam tudo, até lista de convidados para eventos”.

Em julho de 2022, Dornelles organizou uma exposição sobre Rui Barbosa na onu, em Nova York. Como era o período de defeso eleitoral, em que as redes sociais das entidades federais não podem ser atualizadas, contou sobre a experiência em seu próprio Twitter e no blog pessoal. Fez também desabafos (“Inacreditável como pessoas que deveriam apoiar a minha gestão tentaram me destruir”), intercalados com descrição de seus passeios: “Conheci o prédio onde gravam o apartamento de Carrie Bradshaw, personagem da Sarah Jessica Parker, em Sex and the City. […] Foi emocionante. Só faltava aparecer o Mr. Big com aquele charme irresistível”.

Na véspera de sua exoneração, Dornelles fez atualizações na conta de Instagram da Casa de Rui Barbosa, as primeiras depois de meses. Em uma das últimas postagens, registrou seu encontro com o ex-presidente Michel Temer nos jardins da instituição.

Expectativa realista

No AMLB, a equipe de Rosângela Rangel conta com pouco mais de dez pessoas, entre arquivistas, bibliotecários e bolsistas. O grupo é responsável por atender pesquisadores, organizar mostras e livros, acompanhar empresas responsáveis pela digitalização e também fazer visitas técnicas a acervos pessoais que possam vir a integrar o conjunto da instituição.

Apesar da leva de dezesseis acervos digitalizados no último ano, a diretora admite que ainda falta muito para ter uma porcentagem significativa do arquivo em versão digital. A equipe enxuta também precisa dar conta de deixar o material de um acervo bem organizado e inventariado antes de começar o processo de digitalização.

Ainda que a estrutura seja precária, produções acadêmicas e editoriais baseadas no arquivo não cessam em aparecer. Boa parte dos livros que compilam correspondência entre escritores brasileiros do século 20 contam com material do AMLB. Volta e meia uma novidade é revelada. Só para ficar num exemplo recente, em 2017 a professora mineira Edneia Rodrigues encontrou quarenta textos inéditos enquanto pesquisava no acervo de João Cabral de Melo Neto para seu doutorado.

Os desafios são muitos. O AMLB não é bem preparado para receber acervos em fitas k7 e vhs, por exemplo. “Não temos laboratórios para convertê-los”, contou Rangel, sem deixar de exaltar o papel como o mais duradouro dos formatos e lamentar a pouca duração da maioria dos suportes virtuais. “Os programas de computador são substituídos o tempo todo, disquetes já não têm mais serventia”.

O fim da gestão bolsonarista é um alívio para muitos servidores. Mas a preocupação segue forte diante das dificuldades intrínsecas de uma instituição pública cujo orçamento diminui recorrentemente há pelo menos dez anos. A verba anual de custeio da fundação é de cerca de R$ 6 milhões. No portal da transparência, constavam R$ 47 milhões de gasto em despesas previstas para 2022, levando em conta a folha de pagamento de funcionários.

As expectativas para o novo governo Lula são realistas. Os tempos de orçamento parrudo (que, nos dois primeiros mandatos, chegou a R$ 10 milhões) ficam provavelmente só na lembrança. Mas espera-se que a pesquisa e o patrimônio sejam tratados com respeito. “Fico preocupada quando ouço um discurso que privilegia a inovação e coloca a área de preservação como superada. Esperamos que a nova gestão entenda a importância da memória para o nosso futuro”, observou Ana Pessoa.

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Quem escreveu esse texto

Helena Aragão

É jornalista e mestre em História, Política e Bens Culturais pela FGV.