Ensaio,

O espião e o poeta

Atual clima político não favorece a releitura de Gerardo Mello Mourão, que renegou o fascismo e criou versos de complexidade assombrosa

01maio2019

Quando faleceu em 2007, no Rio, o poeta Gerardo Mello Mourão tinha noventa anos de idade e uma vasta obra poética. A leitura de um de seus obituários talvez deixasse a impressão de uma figura saída de A literatura nazista na América, compêndio de Roberto Bolaño sobre escritores imaginários de extrema direita. Homem de passado integralista, nos últimos anos de vida Gerardo era mais lembrado por ser o pai do artista plástico Tunga do que por seus livros, que o esquecimento insistia em rondar, como uma serpente prestes a dar o bote fatal.  

Nunca tinha sido muito diferente. Numa crônica de O Globo, em 2 de fevereiro de 1969, Nelson Rodrigues escreve em tom de denúncia: “Um dos silêncios mais feios e mais vis da nossa vida literária é o que se faz contra Gerardo Mello Mourão”. O silêncio remetia às afiliações ideológicas do poeta, mas também a um episódio de sua juventude, que o perseguiu a vida inteira: em 1942, em plena Segunda Guerra Mundial, Gerardo viu-se preso no Rio, aos 25 anos de idade, acusado pelo Estado Novo de participação em uma célula nazista, responsável por serviços de espionagem e sabotagem em solo brasileiro — teria sido, portanto, agente informal da Abwehr (Serviço Militar de Informações do Terceiro Reich). Condenado pelo Tribunal de Segurança, amargou seis anos de cárcere, boa parte cumpridos na Ilha Grande, para onde a ditadura de Vargas enviava seus presos políticos. Com a queda do presidente, tem o processo anulado pelo Supremo Tribunal Federal e recobra a liberdade.

Desde então, a sombra de espião do Eixo acompanha o poeta. Em 1953, em artigo na revista O Cruzeiro, o jornalista David Nasser não apenas reacende a polêmica sobre sua participação na célula nazista, mas o responsabiliza pessoalmente pelo afundamento de seis navios brasileiros em agosto de 1942 — acusação sensacionalista, ausente do processo original. Por muito tempo, esse artigo de Nasser alimentará a lenda ao redor de Gerardo.

O poeta, contudo, segue compondo sua obra. E, de tempos em tempos, o silêncio é rompido. O ano de 1972 é de vento favorável: lança Peripécias de Gerardo, misto de epopeia e diário de viagens, e vence o Prêmio Mário de Andrade, honraria máxima em poesia no Brasil à época. Trabalhava então como jornalista, era tido como um dos homens mais eruditos do país e circulava razoavelmente bem no meio intelectual carioca, preponderantemente de esquerda — em parte porque, agora, encontrava-se “no lado certo da história”: tivera os direitos políticos cassados pelo AI-5, fora preso pelos militares e, acusado de ligações comunistas, vira-se forçado a se exilar temporariamente no Chile. Numa foto de 1968, pode ser visto na prisão ao lado de Zuenir Ventura e Hélio Pellegrino, entre outros, todos descamisados, mas com ar moleque, ao lado de um soldado de semblante carrancudo. De suposto conspirador pró-Eixo, Gerardo via-se agora membro da resistência aos militares.

Associa-se aos intelectuais católicos guiado por Alceu Amoroso Lima, que o envia ao movimento integralista

É então que, em 1973, concede uma curiosa entrevista ao Pasquim. É sabatinado por Sérgio Augusto, Jaguar, Ivan Lessa e um implacável Millôr Fernandes, que não lhe permite saídas fáceis e o aperta a cada pergunta. A breve apresentação do entrevistado, elaborada por Jaguar, segue o espírito iconoclasta da publicação: “Gerardo Mello Mourão é uma figura misteriosa. Uns dizem que ele é um grande poeta; outros, que é um imitador de Ezra Pound; outros, que foi um espião nazista. […] Afinal, o que você faz da vida?” A provocação não era leve. Além de retomar duas pechas recorrentes — a de imitador de Pound e de espião nazista —, nem sequer dava como certo que se tratasse de grande poeta. A entrevista é a primeira ocasião pública em que Gerardo fala detalhadamente sobre a condenação que sofrera três décadas antes. E seu relato é, em parte, revelador, pois não esconde que fez, de fato, durante os primeiros meses de 1942, pequenos serviços à “causa alemã”. 

Por volta de 1935, os jovens brasileiros que começavam a “tomar conhecimento da vida pública” viam-se divididos entre duas veredas, segundo Gerardo na entrevista ao Pasquim: comunismo ou integralismo, que o poeta associa sem meias palavras ao fascismo. À época, comunismo e fascismo se apresentavam como o que havia de moderno em termos de organização política — os projetos democráticos encontravam-se desacreditados pelas crises econômicas e pelo esfacelamento dos laços sociais. O tempo vibrava por uma solução radical e totalizante. 

Filho de uma família tradicional, embora empobrecida, do interior cearense, recém-saído do seminário dos padres redentoristas em Congonhas do Campo (MG), Gerardo chega ao Rio num sábado de Carnaval: “Você não pode imaginar o que era o Carnaval no Rio de Janeiro naquele tempo. Cantava-se pelas ruas: ‘Eva querida, quero ser o seu Adão’. Era aquela coisa fabulosa! Eu dizia: ‘Está tudo perdido, está tudo louco, vai tudo para o inferno!’. Fui à missa no domingo de manhã e procurei o padre: ‘Estou saindo do mosteiro, quero voltar’. O padre pediu-me que tivesse calma. E eu não voltei”. Ficando, associa-se ao meio intelectual católico carioca, guiado pela figura do crítico literário Alceu Amoroso Lima, que, ato contínuo, o envia para a Travessa do Ouvidor, nº 32: ali se localizava a sede do movimento integralista, em frente à célebre Livraria Schmidt, do poeta Augusto Frederico Schmidt. Além de livreiro e poeta, Schmidt era também editor, responsável pela publicação tanto de O que é o integralismo? (1933), de Plínio Salgado, quanto dos primeiros romances de dois comunistas históricos: Graciliano Ramos, de quem publica Caetés (1933), e Jorge Amado, que estreia com O país do Carnaval (1931). A livraria servia ainda de ponto de encontro daquela intelectualidade católica, que tinha em Alceu Amoroso Lima, Gustavo Barroso e Miguel Reale as maiores referências intelectuais, e em Salgado o grande líder, articulador e ideólogo.

Secretário da Aliança Integralista

Quando Gerardo chega ao Rio, aos dezoito anos, o movimento integralista já está a todo vapor. De início, trabalha como professor de latim, mas logo começa a atuar como jornalista. Ocupa também cargo de secretário da Aliança Integralista Brasileira, acompanhando de perto o apodrecimento das relações entre o movimento e o governo Vargas, que desemboca no levante frustrado de 1938, em que 1500 integralistas veem-se encarcerados, levando Plínio Salgado ao exílio em Lisboa. A partir dessa data, Gerardo é preso sucessivas vezes por conspiração. Em 1942, encontra-se no posto de redator da Gazeta de Notícias, diário germanófilo, pró-Eixo, alimentado pela agência de notícias alemã Trans-ocean. Na entrevista ao Pasquim, insiste em três pontos: primeiro, à época, o Brasil ainda não declarara guerra à Alemanha, portanto, atuar a favor da Alemanha não implicava traição à pátria; segundo, sua posição pró-Eixo devia-se sobretudo à oposição aos EUA, relacionada ao nacionalismo de sua formação integralista; terceiro, motivava-o também o ódio a Vargas.  

É por essa época que, prestes a viajar a Buenos Aires a trabalho, é abordado por um capitão do Exército — certo Túlio Regis do Nascimento —, que sonda a possibilidade de o jornalista levar uma encomenda para a Argentina. O capitão é explícito: trata-se de correspondência a serviço da causa alemã. Gerardo se interessa: “Mas é alguma coisa contra a ditadura de Getúlio? Se for, me meta nisso que eu quero estar por dentro”. E meteu-se por dentro. 

Na entrevista, Gerardo limita sua breve experiência como dublê de espião a pequenos episódios em que, sob a convicção de que atuava contra Getúlio e contra os eua, transportou pessoalmente ou articulou o transporte de correspondência secreta a um oficial alemão em Buenos Aires. Em 1978, contudo, é surpreendido pela publicação de Suástica sobre o Brasil, do brasilianista americano Stanley Hilton. O livro investigava a atuação de células nazistas em território brasileiro. 

Num primeiro momento, avalia Hilton, tais células eram capitaneadas por alemães vivendo em solo nacional. O caso mais célebre é o de Curt Meyer-Clason, preso em 1942. No cárcere da Ilha Grande, apaixona-se pela literatura brasileira, tornando-se mais tarde seu embaixador oficial na Alemanha, traduzindo uma gama de autores nacionais, incluindo aí Grande sertão: veredas. De Gerardo, que Meyer-Clason possivelmente conheceu na ilha, traduziu O valete de espadas

A vocação de Gerardo não era a prosa nem a política, mas a poesia. A obra maior é, sem dúvida, ‘Os peãs’

Segundo Stanley Hilton, as células de espionagem organizadas por alemães natos são desbaratadas, com a ajuda do serviço secreto americano, em março de 1942. É então que se organizam novos grupos, envolvendo cidadãos brasileiros simpatizantes do Eixo. Ainda segundo o brasilianista, a atuação de Gerardo vai um pouco além do que o poeta admitira ao Pasquim: chegara a participar de uma tentativa fracassada de sabotagem do navio mercante Windhuk, a serviço dos eua, ancorado na Ilha das Cobras. 

Hilton nada fala sobre o envolvimento do poeta com o afundamento dos navios nacionais e, segundo o próprio Gerardo, quando o Baependi, primeiro navio brasileiro atacado, afunda, ele já estava preso havia vários meses. Ainda assim, Gerardo envolve-se num acalorado debate com o brasilianista, que se estende por várias edições do Jornal do Brasil. O poeta acusa o americano de amparar sua pesquisa em confissões forjadas por torturadores e aventa a possibilidade de o brasilianista ser agente da CIA. Hilton se esforça para responder friamente, mas, a certa altura, o acusa de “nazismo cultural”. Mais uma vez, o passado retornava para assombrar o poeta.

Escritor de escritores

Na época, Gerardo era um “escritor de escritores”, desconhecido do grande público, ignorado pela academia, mas premiado e publicado no exterior. Nunca renegara os anos de integralismo: insistia que haviam representado uma experiência intelectual de enorme fecundidade. Por outro lado, admitia que os anos de cárcere sob o Estado Novo constituíram um momento de ajuste de contas com as paixões políticas da juventude. Na entrevista ao Pasquim, confessa que foi nos primeiros dias de cadeia que se deu conta “da monstruosidade que era o fascismo”. 

O ajuste de contas reflete-se em intensa atividade criadora. Na prisão, esboça um diário, um romance e um livro de poemas. O romance — O valete de espadas —, parábola existencialista, narra a história de certo Gonçalo, envolvido num estranho encantamento: todas as manhãs, ao despertar, descobre-se num lugar diferente — uma cidade estrangeira, um prostíbulo, um mosteiro. É um “valete de espadas” num jogo absurdo: a vida. O enredo fantástico fazia todo sentido para um homem que, poucos anos depois de abandonar o mosteiro em Minas, vê-se lançado numa liberdade atordoante: frequenta a noite do Rio e os cabarés da Lapa; na companhia de Abdias do Nascimento e outros poetas, funda a Santa Hermandad de La Orquídea e envereda numa longa viagem pelas Américas; ao voltar envolve-se numa intentona fracassada contra Vargas, mete-se entre espiões nazistas e acaba preso numa ilha. A trajetória espetacular transparece de forma cifrada no romance, que vem à luz em 1960, sagrando-se sucesso quase unânime de crítica, logo traduzido para o francês, editado pela prestigiosa Gallimard. 

Mas a vocação de Gerardo não era a prosa — nem a política ou a espionagem —, mas a poesia, e é por ela que alcança o máximo de suas capacidades artísticas. A obra maior é, sem dúvida, a trilogia poética reunida sob o nome de Os peãs, poema contínuo que engloba O país dos Mourões (1963), Peripécias de Gerardo (1972) e Rastros de Apolo (1977). Se O valete de espadas tratara do isolamento da condição humana — o protagonista que desperta sempre para o enigma melancólico de uma solidão radical —, Os peãs constitui a resposta ao problema existencial proposto no Valete, resposta que vem na forma de uma poesia afirmativa, sensualista, jactanciosa, ferida pelo grande sim nietzschiano de aceitação da vida em toda a sua tragicidade dilacerante: “Por mar e mar me navegaram os ventos/ e os que conhecem o rastro/ dos deuses sobre as águas/ não se perdem no mar/ já desde quando/ esse oráculo de amor/ disse a Teseu a endemoniada Pythia/ pois entreguei meus pés a meus demônios/ ó Eros ó Pallas Athenaia/ e amor e liberdade iam regendo/ o labirinto”. 

No Valete, o protagonista Gonçalo é empurrado de uma experiência a outra, jamais aderindo à aventura: seu estado é o de uma espantada hesitação que o prende na condição de estrangeiro. A partir de O país dos Mourões, retirando a máscara do personagem e assumindo a primeira pessoa, mesclando biografia, crônica familiar, pesquisa histórica e diário de viagens, o poeta entrega os pés a seus demônios e faz de sua poesia um elogio vigoroso da liberdade — palavra-chave que se repete ao longo do tríptico —, liberdade como vivência deliberada de uma aventura de autoinvenção. Não se trata de uma poesia didático-prescritiva que, como o integralismo de sua juventude, alimente delírios de uniformização social. Pelo contrário, celebra a variedade da experiência humana, ao mesmo tempo que reserva para si a prerrogativa de perseguir sua própria e altamente idiossincrática epifania: “Pois entre os cavalos ruivos e as éguas ruivas e as ribeiras verdes/ passeio a peripécia da tristeza/ peri/ patética/ e a cada passo invento a morte e sou/ minha própria invenção”. 

Raros poetas brasileiros poderiam escrever versos como os supracitados sem incorrer em impostura e oratória vazia. Mais do que qualquer outro de sua geração, Gerardo precisava dizer um largo sim à vida, sob o risco de definhar em infâmia. Sua invenção de si não passou despercebida. Carlos Drummond elogia efusivamente O país dos Mourões, que, no título e no memorialismo, retomava, num misto de homenagem e desafio, o poema de A rosa do povo, “No país dos Andrades”; na ocasião do lançamento de Peripécias de Gerardo, o crítico J. G. Nogueira Moutinho escreve que “o mínimo que se pode esperar da crítica especializada […] é uma análise pormenorizada […] desse texto revolucionário”. Drummond, novamente, escreve carta a Gerardo como um entusiasta de primeira hora: “Peripécias de Gerardo é outro épico esmagador. Leio, releio, me entusiasmo, a cada momento. Puxa vida, mas você é mesmo poeta que não se pode medir a palmo, e conseguiu o máximo de expressão usando recursos artísticos que nenhum outro empregou ainda em nossa língua”.

Vieram os prêmios, como o de 1972 e o Jabuti de 1998. Mas seus livros encontram-se agora esgotados. É pena

Em tempo, vieram prêmios, como o de 1972, e o Jabuti, em 1998, por Invenção do mar. Mas seus livros encontram-se, agora, esgotados e fora de catálogo. Mesmo nas faculdades de letras contam-se nos dedos os estudantes — e mesmo os professores — que conhecem Gerardo. O atual clima político do país, vivenciando o ressurgimento de um reacionarismo autossatisfeito, militante e paranoico, em nada favorece o redescobrimento do autor. É uma pena: sua leitura revela um poeta de complexidade assombrosa, cuja poesia permanece como autoinvenção experimental e inclassificável, testemunho valioso da busca humana pela verdade da própria aventura.  

Quem escreveu esse texto

Odorico Leal

É doutor em literatura brasileira pela USP.