Ensaio,

O blackface de Virginia Woolf

Ao se disfarçar de “príncipe abissínio”, escritora enganou a Marinha britânica em episódio que traz questionamentos sobre o privilégio da ambiguidade

01abr2020

Em 7 de fevereiro de 1910, o imperador da Abissínia, três príncipes, um intérprete e um representante do Ministério das Relações Exteriores britânico visitaram o navio de guerra hms Dreadnought, atracado em Weymouth, quase duzentos quilômetros ao sul de Londres. A comitiva foi recebida com pompa pelos oficiais, que organizaram um tour de 45 minutos pelo navio. “O filho do rei Menelik e herdeiro do trono da Abissínia subiu a bordo com sua comitiva para visitar o navio. Ele pareceu bastante impressionado com o que viu, um tanto maravilhado, eu acredito. Trajava uma vestimenta oriental, que apesar de não ser muito apropriada para a estação tinha uma natureza brilhante”, lê-se nos registros de um oficial do Dreadnought. A visita parecia ter sido um sucesso.

Cinco dias depois, os jornais revelaram que a Marinha britânica havia sido alvo de uma grande piada: cinco homens e uma mulher de afluentes famílias britânicas haviam se disfarçado como nobres abissínios e enganado os oficiais do navio. A Marinha, humilhada, exigiu a prisão dos autores da brincadeira; contudo, nada de sério aconteceu — eles receberam apenas convites para participar de festas a fantasia e sofreram reprimendas por mancharem o nome das famílias. “Foi chamado de o maior embuste da história”, explicou Virginia Woolf durante uma palestra realizada no Romdell Women’s Institute, em 1940. Ela saberia melhor do que ninguém, pois havia participado do “Embuste do Dreadnought”, como ficou conhecido.

Na época com 28 anos e ainda chamada Virginia Stephen — e anos antes de publicar Orlando (1928), em que  o protagonista passa por mudanças de gênero ao longo da narrativa, ela foi convidada em cima da hora por seu irmão, Adrian Stephen, e Horace de Vere Cole, o verdadeiro autor do golpe, com o pintor Duncan Grant, Guy Ridley e Anthony Buxton. Cole e Stephen já tinham feito uma brincadeira parecida em 1905, quando estavam na universidade: Cole se disfarçara como o sultão de Zanzibar, com Stephen fazendo parte do seu séquito, e conseguira que o prefeito de Cambridge o acompanhasse em uma visita guiada pela cidade.

Um amigo de Cole, que era oficial no navio Hawk, lhe pedira para que pregasse uma peça nos oficiais do Dreadnought, seus arquirrivais. Havia uma cultura de “pegadinhas” entre os jovens da Marinha Real da Grã-Bretanha, à época a força política mais poderosa do mundo em meio à expansão imperialista. Animado, Cole, junto com Stephen, montou um plano ousado. Aproveitando-se de uma visita que o imperador da Abissínia (hoje Etiópia) faria à Europa, Cole forjou uma comitiva falsa para conhecer o Dreadnought. Ele seria um representante do Ministério das Relações Exteriores e Stephen, o intérprete, enquanto o resto posaria de nobres da Abissínia. Woolf teve dois dias para “se transformar em príncipe abissínio”. Ela e os outros membros do grupo foram até um figurinista de teatro chamado Clarkson. Em meio a joias, turbantes e esplêndidas vestimentas orientais, tiveram seus rostos e braços pintados de preto e usaram perucas e barbas falsas. Compraram uma gramática suaíli e tentaram aprender algumas palavras na língua a ser falada durante a visita ao navio.

Transformação

“Que raios eu estava fazendo dirigindo por Londres às oito da manhã de um dia de primavera vestida em cetim vermelho e com um turbante na cabeça?”, perguntou-se Woolf. “Eu me senti bastante esquisita.” Ao chegar à estação de trem e ver os outros “príncipes” esperando para entrar na cabine de primeira classe, ela passou por uma transformação: “Eu me tornei outra pessoa”. Todo mundo os levava a sério. “As pessoas nos encaravam de modo respeitável. Estava claro que acreditavam que nós éramos abissínios, e nós também começamos a acreditar nisso”, relatou.

Cole, sob o nome falso de “Herbert Cholmondeley”, do Ministério das Relações Exteriores, havia enviado um telegrama para a Marinha avisando sobre a visita. Quando o trem chegou, viram que havia um homem de uniforme esperando-os na plataforma. “O embuste havia começado”, escreveu Stephen no livro The Dreadnought Hoax, em que conta a sua versão do golpe, publicado em 1936 pela Hogarth Press, editora de Virginia e seu marido, Leonard Woolf. 

Ao ver os outros ‘príncipes’, Woolf passou por uma transformação: ‘Eu me tornei outra pessoa’

Um tapete vermelho foi estendido para receber os visitantes ilustres, assim como foi montada uma barreira para separar os “nobres estrangeiros” da multidão que se aglomerava. “Nós descemos e andamos em pares ao longo da avenida. Chapéus se levantavam. As mulheres se curvavam. Alguém até soltou um cumprimento. Uma fileira de oficiais batia continência. Nós nos curvávamos graciosamente, mas não sorríamos. Acreditávamos que príncipes nativos deveriam ser muito dignos e severos”, narrou Woolf.

Quando subiram ao navio, “não era mais uma mera brincadeira. Nós estávamos quase representando a verdade”, escreveu Stephen. Todos estavam convencidos de estar recebendo a visita de nobres abissínios “e teria sido muito difícil não acreditar nisso”, continuou. Essa declaração é ainda mais surpreendente quando se descobre que o primo de primeiro grau de Adrian e Virginia, Willy Fischer, era o comandante do navio que acompanhou a visita guiada do grupo. Ele não reconheceu os primos. As pessoas veem o que querem ver.

Durante a visita, o hino de Zanzibar  (ilha da costa oriental africana que hoje faz parte da Tanzânia) foi tocado — não conseguiram localizar  o da Abissínia a tempo — e um pedido de desculpas foi feito ao “imperador”, que não se importou. Uma rajada de vento quase levou embora as  barbas falsas dos “príncipes”, que se recusaram a consumir as bebidas oferecidas ao final do tour para evitar manchar a maquiagem.

Importante fazer aqui uma ressalva para não parecer que os ingleses daquele período não eram racistas; pelo contrário, havia muita discriminação. Mas esses supostos abissínios eram da realeza, tinham um status social elevado, e muitos ingleses respeitavam — pelo menos nesse caso — esse marcador de diferença social mais até do que o racial. Além disso, provavelmente muitos dos que foram enganados nunca tiveram contato com nenhum habitante da Abissínia — ou até mesmo com qualquer pessoa negra — para poder desconfiar da verdadeira identidade do grupo. O “imperador” não estava propriamente nu, mas usava blackface.

A “língua” falada por eles era uma mistura de idiomas antigos e modernos, com algumas palavras em suaíli jogadas no meio. Os diálogos soavam algo como “Entaquoi, mahai, kustuf”. “Bunga bunga” também foi uma expressão usada pela comitiva, e ela ficou tão famosa na época que acabou virando um bordão entre os ingleses.

O relato de Woolf sobre o episódio é muito bem-humorado e traz uma nota de transgressão ao ultrapassar as restritas fronteiras raciais e de gênero da Inglaterra do início do século 20. O embuste dividiu a opinião pública — alguns acharam divertido, outros ficaram indignados com a humilhação passada pela Marinha. Posteriormente, o crossdressing de Woolf foi interpretado por alguns autores como uma forma de subverter as políticas oficiais do Império britânico, ainda que nenhuma intenção nesse sentido transpareça na sua narrativa. 

Ao passo que o disfarce pode transgredir certas normas sociais, ele também pode acabar reafirmando — e até criando — outros estereótipos

Para as sensibilidades atuais, o “maior embuste da história” traz uma série de elementos racistas e colonialistas. Não só pelo uso do blackface, prática bastante antiga do teatro britânico — é só lembrar de Otelo, de William Shakespeare, e outros personagens mouros — e ressignificada nos Estados Unidos dos anos 1830 (como uma forma de ridicularizar pessoas negras para divertir uma plateia branca, ao exagerar representações estereotipadas de negros), mas também pela própria possibilidade do disfarce. 

Segundo Anne McClintock, professora da Universidade Princeton, em seu Couro imperial — raça, gênero e sexualidade no embate colonial (Editora da Unicamp, 2018), grupos privilegiados — caso de Woolf e seus amigos — podem expor de modo extravagante o seu direito à ambiguidade, que vira um privilégio em si. Ao passo que o disfarce pode transgredir certas normas sociais, ele pode reafirmar — e até criar — outros estereótipos. Tanto que algumas semanas depois do embuste, conta Woolf, quando o verdadeiro imperador da Abissínia chegou a Londres, meninos corriam pelas ruas gritando “bunga bunga” para ele. A Marinha recusou seu pedido de visita à frota britânica por receio de ser novamente alvo de chacota. O que foi motivo de risada para os ingleses não deve ter tido graça nenhuma para o soberano abissínio.

Quem escreveu esse texto

Paula Carvalho

Jornalista e historiadora, é autora e organizadora de ireito à vagabundagem: as viagens de Isabelle Eberhardt (Fósforo).