Divulgação Científica,

Darwin e o segundo sexo

Apesar de respeitar e admirar pensadoras e escritoras, o autor de A origem das espécies subestimava o poder intelectual das mulheres

01abr2021

“Se eu viver até os oitenta anos”, escreveu Charles Darwin a um amigo em novembro de 1837, “não cessarei de maravilhar-me ao me ver escritor”. 

Ele havia recebido recentemente as provas de seu primeiro livro e não conseguia parar de admirar sua impressão nítida e seu papel macio. “Viagens do Beagle”, lia a lombada, e abaixo disso “Vol. 3º”, e abaixo disso “DARWIN”. Terceiro de uma coleção de três volumes, todos de autores diferentes, o seu foi o primeiro a ser completado. Desagradavam-lhe as minúcias das páginas para revisão: “Se atento ao sentido”, reclamava, “esqueço a grafia, e vice-versa”. 

Darwin tinha 28 anos. Bronzeado pelos cinco anos a bordo do Beagle, ao retornar à Inglaterra ele descobriu que era conhecido nos círculos científicos em função dos despachos enviados ao país, nos quais relatava suas descobertas. Uma carreira nas ciências havia usurpado seu plano de trabalhar como um pastor campesino que se interessa por história natural. 

Desde março ele estava vivendo em um flat na Great Marlborough Street, próximo ao British Museum e perto do seu irmão, Erasmus. As ruas imundas de Londres eram uma barafunda de vendedores ambulantes, pivetes, carroças de café e bobbies [policiais ingleses] com seus chapéus altos. 

Darwin considerava Harriet Martineau ‘assoberbada por seus próprios projetos e pensamentos’

Liberto das agruras da sobrevivência graças ao dinheiro da família, Darwin ficava sentado à mesa entre papéis e livros, olhando fixamente um prédio feio do outro lado da rua e pensando sobre reprodução, competição e a luta pela vida. Ainda faltavam 22 anos para que ele publicasse A origem das espécies.

Na primavera seguinte, ele foi caminhando ao flat do seu irmão, próximo ao seu, para uma festa. Aos 33, Erasmus se assemelhava a Charles: testa alta, sorriso fácil, costeletas. Darwin considerava Erasmus um anfitrião de jantares “bastante excelentes”. Ele admirava sua inteligência astuta, seu conhecimento sobre arte e literatura. Um pouco menos robusto e ativo que Charles, Erasmus não havia seguido carreira alguma além de se rodear de pessoas bem-sucedidas. Estas incluíam o historiador e ensaísta Thomas Carlyle e o matemático e engenheiro Charles Babbage, que no ano anterior tornara público o seu computador mecânico, a Máquina Analítica, sucessora de sua antiga Máquina Diferencial. 

Charles ficou satisfeito em saber que a criada de Erasmus, Sally, havia preparado um banquete apetitoso, que incluía salmão. Ele notou que a sobremesa sozinha havia custado a Erasmus oito xelins e seis pence.

Essa festa concedeu ao jovem escritor a oportunidade de falar de trabalho com Harriet Martineau, uma prolífica jornalista e socióloga pioneira que se sustentava financeiramente com seus escritos. A rainha Vitória era sua fã, e Martineau compareceria à sua coroação em junho daquele ano. Ela gozava de um nível de fama e influência que Darwin não podia sequer imaginar. 

Ademais, Martineau havia construído sua impressionante bibliografia sem as vantagens que ofereciam escadotes e redes de segurança a homens da classe social de Darwin. Ele nunca soube o que era passar necessidade. O seu pai havia deixado claro que Charles, como Erasmus, não precisaria se preocupar com dinheiro. Martineau, ao contrário, ainda jovem fora forçada, em função da falência da empresa têxtil de seu pai, a ajudar a sustentar a família por meio do bordado e da escrita. 

Darwin a conhecera um ano e meio antes, durante sua primeira visita a Londres depois de ele ter regressado à Inglaterra. Erasmus era um amigo próximo de Martineau — senão mais — e passava “com ela manhã, tarde e noite”, escreveu Darwin à sua irmã Susan. Seu amigo e mentor, o geologista Charles Lyell, havia recentemente rendido visita a Martineau e avistara uma bela rosa em cima de uma mesa, sobre a qual ela comentou casualmente: “Erasmus Darwin me deu de presente”.

Figura vibrante

Lyell a encontrava cercada por editores e escritores do periódico liberal Edinburgh Review. Ela presidia estes salões apesar da surdez, que requeria aos visitantes praticamente gritar na sua corneta acústica. Contrariando a ideia de que a feminilidade era uma limitação, em Society in America (Sociedade na América) ela insiste que somente a surdez constituía um obstáculo severo. “Eu carrego uma corneta de fidelidade notável”, acrescenta, “um instrumento que, ademais, aparenta exercer uma espécie de poder vitorioso, graças ao qual eu ganho mais em tête-à-têtes do que é concedido às pessoas capazes de ouvir conversas genéricas”. Por vezes Martineau fumava charutos. Ela era uma figura vibrante, benquista nas reuniões de artistas, intelectuais e políticos. 

Martineau tinha uma maldosa reputação de insipidez e falta de refinamento feminino. “Fiquei atônito ao descobrir”, escreveu Darwin à sua irmã Caroline após o primeiro encontro, “quão pouco feia ela é”. Os dois conversaram sobre “uma infinidade incrível de assuntos”.

Como outros homens que a conheciam, Darwin considerava Martineau “assoberbada por seus próprios projetos, seus próprios pensamentos e suas próprias habilidades”. Ao invés de assentir com a cabeça às ideias dos homens, ela era conhecida por responder com as suas. 

Em 1833, a revista conservadora Fraser’s Magazine havia reconhecido o status de Martineau, então com 31 anos, dedicando um espaço considerável a argumentar contra suas conclusões e zombar de sua aparência. Seu segundo trabalho publicado, On Female Education (Sobre a educação do sexo feminino), uma defesa da sua própria paixão pelo aprendizado e uma crítica à expectativa de que sua educação acabaria quando ela atingisse a maioridade, foi lançado quando tinha 20 anos. Seu livro mais famoso, Illustrations of Political Economy (Ilustrações de economia política), dramatizava histórias humanas nas quais figuravam as teorias econômicas de Adam Smith, Thomas Malthus e James Mill. Didático, por vezes simples, era uma obra lúcida e acessível e foi considerada um avanço importante para a economia progressista, centrada no ser humano. Seu sucesso mais recente era Society in America, baseado em dois anos de viagem durante os quais foi recebida por artistas e legisladores. 

Ela visitou o presidente Andrew Jackson e se hospedou com o ex-presidente James Madison. Ambos possuíam escravos, mas Martineau não se eximiu de retratar os horrores da escravidão. Ela já vinha escrevendo sobre isso, tanto como um pecado moral, quanto como um sistema economicamente ineficaz, desde o início da sua carreira. Nesse tópico, ela teria chegado a um consenso com Darwin, um abolicionista fervoroso que havia testemunhado os abusos da escravidão no mundo, da África ao Brasil. As suas teorias sobre a seleção natural foram em parte motivadas por um desejo de minar concepções racistas promulgadas por cientistas. 

Darwin e Martineau compararam métodos de escrita. Muitos dos livros de Martineau nasciam de seus detalhados diários de viagem, que era como Darwin havia elaborado o seu próprio livro sobre a sua jornada ao redor do mundo. Dizia-se que Martineau requeria pouca revisão para as muitas páginas que fluíam da sua caneta. Darwin a julgava invencível — e parece ter expressado essa ideia. 
De maneira alguma, ela respondeu; algumas horas consecutivas de trabalho árduo tendiam a exauri-la. Darwin sentia o mesmo. Ele assinalou que se sentiu gratificado ao descobrir que Martineau não era “uma completa Amazona”. 

Potencial das mulheres

Décadas depois, a despeito das inúmeras interações respeitosas e de admiração que teve com Martineau e outras mulheres escritoras e pensadoras, bem como com suas irmãs, primas, esposa e, também, com as esposas de seus colegas, todas inteligentes e bem instruídas, Darwin descartou exaustivamente o potencial intelectual das mulheres. 

“A distinção principal entre os poderes intelectuais dos dois sexos”, ele afirma em A origem do homem (1871), “fica demonstrada pela capacidade do homem de atingir, seja qual for o encargo, maior eminência do que a mulher — quer este requeira profundidade de pensamento, razão ou imaginação, ou meramente o uso dos sentidos e das mãos”.

‘Acredito que as mulheres, superiores aos homens em qualidades morais, sejam inferiores intelectualmente’

Em 1881, a educadora e reformista social norte-americana Caroline Augusta Kennard escreveu a Darwin para perguntar se ela o havia compreendido corretamente sobre a questão da inferioridade feminina. Sem perceber a ironia, ele lhe respondeu dizendo: “Eu certamente acredito que as mulheres, embora geralmente superiores aos homens [em] qualidades morais, sejam inferiores intelectualmente”.

Ele reconheceu que havia “alguma razão para crer que originalmente (& até os dias atuais no caso dos Selvagens)” homens e mulheres demonstraram inteligência equiparável, insinuando, assim, a possibilidade de reconquistar-se tal igualdade no mundo moderno. “Mas para fazê-lo, segundo creio,” acrescentou, “as mulheres devem tornar-se ‘provedores’ regulares, tal como o são os homens; & podemos suspeitar que a educação inicial das nossas crianças, para não mencionar a felicidade dos nossos lares, sofreria, nesse caso, consideravelmente”.

Infantil e eficaz

Martineau, em contraste, descreveu Darwin como “bem empregado, de índole sincera, bem-sucedido e genial”. Ela o achava “simples, infantil, meticuloso, eficaz”. Mais tarde, ela se apressaria em defender A origem das espécies. Diferentemente do jovem escritor que a admirou em uma festa, ela não tentou se colocar acima de metade da raça humana.

Lá em 1838, no entanto, antes que ele aderisse ao jogo evolucionário e fosse pai de dez crianças — gestadas por sua mulher e cuidadas por babás cujo trabalho possibilitou-lhe ser considerado, hoje, o pai mais afetuoso da era vitoriana — e antes que ele escrevesse sobre as mulheres como se tivesse esquecido as inúmeras maneiras pelas quais aprendeu com elas durante toda a sua vida, Darwin resumiu sua admiração por Harriet Martineau escrevendo à sua irmã Susan: “Ela é uma mulher maravilhosa”. (Tradução de Maria Petrucci)

O texto “Darwin e o segundo sexo” foi publicado originalmente no jornal The New York Times, em 7 de fevereiro de 2021.

Quem escreveu esse texto

Michael Sims

É autor norte-americano de Darwin’s Orchestra: An Almanac of Nature in History and the Arts (Penguin).