Direitos Humanos,

Um crime abominável

O brutal assassinato do congolês Moïse Mugenyi Kabagambe mostra a decadência do país em correlação a um projeto de nação

03fev2022

Em 24 de janeiro de 2022, o refugiado congolês Moïse Mugenyi Kabagambe foi brutalmente (o advérbio é de uma insuficiência ainda mais brutal) assassinado no quiosque Tropicália, próximo ao posto 8 da praia da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. O imigrante de 24 anos foi espancado até a morte.

A notícia do hediondo homicídio de Moïse surgiu uma semana após sua morte (no domingo ele foi enterrado; no último fim de semana de janeiro, tuítes divulgaram o fato). Na terça-feira (1º de fevereiro), a dita grande mídia noticiava. À noite viralizava o vídeo das câmeras de segurança no entorno da orla. A apuração do caso só se deu com a mobilização de família e amigos e a repercussão de indignação em redes sociais.

Na tarde da mesma terça, véspera do dia de Iemanjá, ocupava os noticiários (com maior estardalhaço) outra catástrofe, de dimensões genéricas e apocalípticas: a enorme cratera que se abriu em São Paulo, às margens do rio Tietê, vazando as comportas do esgoto da cidade mais rica do país e que, dali a alguns dias, comemoraria o centenário da civilizatória Semana de Arte Moderna de 22.

A conjuntura social, econômica e política emoldura o crime genocida contra um ser humano que, não por acaso, pertence a povos marginalizados e injustiçados, vulnerabilizados por sua condição de etnia e exílio

O aspecto simbólico ou, mais propriamente, alegórico (no sentido histórico dado por Angus Fletcher) é de abissal eloquência. A mera evidência dos fatos é uma exacerbação da afasia. O que falar da monstruosidade, da estupidez e da crueldade (des)humanas? Vale o conselho de Wittgenstein (“aquilo de que não se pode falar deve-se calar”)? De Primo Levi a Paul Celan, há toda uma literatura de testemunho que dá conta não apenas da denúncia, mas do interdito. Apuros da aporia.

O motivo torpe do crime inominável e abominável foi Moïse ter cobrado duzentos reais devidos por duas diárias de trabalho no quiosque. Três homens o espancaram a pauladas e um outro vestindo (ironicamente ou não) a camisa da seleção brasileira (“pátria amada” ou “armada”) amarrou e arrastou o imigrante ao rés do chão. Um massacre sem máscaras.

A conjuntura social, econômica e política emoldura o crime genocida contra um ser humano que, não por acaso, pertence a povos marginalizados e injustiçados, vulnerabilizados por sua própria condição de etnia e exílio. Pobre, preto e imigrante: aporofobia, racismo e xenofobia.

Tropicália

O Brasil de 2019-2022 sofre um programa institucional deliberado de destruição, com sanha paranoica e senha messiânica, psicopatas. O quiosque fica a poucos quilômetros do Condomínio Vivendas da Barra, célebre cela da milícia cuja extensão quintal? quiosque? é uma sucursal da bozolândia.

O nome do quiosque onde Moïse trabalhou, e onde foi executado o assassinato, tem reverberações na cultura brasileira e indica um alto nível alcançado em nossa criação artística. Em seu Twitter, na terça, Caetano Veloso postou que, ao ler a notícia da morte, foi às lágrimas, arrasado, e lamentou a remissão nominal.

Uma obra de Hélio Oiticica a instalação “Tropicália” (1967) deu título à primeira faixa do segundo disco (1967) de Caetano e batizou o movimento capitaneado por ele, Gilberto Gil, Tom Zé e os Mutantes (Rita Lee, Arnaldo e Sérgio Dias Baptista), e que contou ainda com a participação decisiva de Gal Costa, Capinam, Torquato Neto, Júlio Medaglia e Rogério Duprat.

O caldeirão do tropicalismo musical continha ingredientes literários, como, entre outros, os elementos de Oswald de Andrade com a noção de Antropofagia (1928), de José Agrippino de Paula, com o pop-romance-colagem PanAmérica (1967) e da Poesia Concreta paulista, lançada por Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari em 1952, com a fundação do Grupo Noigandres.

Reza a lenda que Tropicália foi transplantado à música por Luiz Carlos Barreto, produtor do pós-Cinema Novo e fotógrafo de Vidas secas (1963, Nelson Pereira dos Santos) e Terra em transe (1967, Glauber Rocha). O cinema nacional também teve uma fase dita tropicalista, com filmes como O Bandido da Luz Vermelha (1968, Rogério Sganzerla) e Macunaíma (1969, Joaquim Pedro de Andrade).

Foi filmada no Congo (pátria de Moïse) uma das extravagâncias mais esdrúxulas de Glauber, Der Leone Have Sept Cabeças (O Leão de Sete Cabeças, 1970). Sua primeira obra de exílio é um radical ensaio alegórico e descontínuo sobre a situação colonial da África como violenta condição para a revolução do Terceiro Mundo.

Em um curta-metragem também radical, instigante e inventivo, Arthur Omar  transforma o país em conceito. Feito inteiro com letreiros (escritos na tela) e quase sem imagens, a África da mítica rainha Ginga é palavra-passe para uma etnografia gloriosa de congadas e moçambiques. Congo (1972) trata do “Congo das coisas”.

O Moisés da África abriu um mar vermelho que, como na tétrica parábola da cratera paulistana, dá passagem a uma terra devastada, coagulada de sangues e dejetos, sem promessa de redenção

Tropicália o movimento musical, o projeto e o combo das obras de arte; e não o quiosque da morte e a sinédoque do programa de genocídio institucionalizado representa uma visão crítica do Brasil com visada criativa. Um de seus aspectos era a mistura de repertórios esteticamente antitéticos (João Gilberto e Chacrinha, por exemplo), sem hierarquias de bom e mau gosto, de alto e baixo (o que quer que seja).

É, talvez, inevitável constatar a decadência do país como correlata à de um projeto de nação e conectar o descompasso ao fracasso. Os (des)governos do Brasil quase nunca estiveram à altura da arte e da cultura brasileiras nem do melhor do povo brasileiro.

Brutalidade jardim

No poema “Plebiscito”, o último de seu último livro (O escaravelho de ouro, 1946), Oswald crava: “Venceu o sistema de Babilônia/ E o garção de costeleta”. Na fraude eleitoral, venceram o cataclismo de Rio das Pedras e a cafajestagem sem muleta. No Diário confessional, Oswald escreve: “A vida é uma calamidade a prestações”.

Com tantas catástrofes de toda sorte e azar (climáticas, institucionais, sanitárias, “naturais”, humanas), a vida resolveu cobrar do Brasil tudo de uma vez. Para qualquer pessoa minimamente sensível (dotada de compaixão e empatia) e civilizada (educada e informada), estão cada vez mais normais e normatizados o pânico e a depressão.

Para o cético Machado de Assis, em 1891, o lema era: “Ao vencedor, as batatas”. Em “Geleia geral”, título sacado da sacada cunhada pelo poeta Décio Pignatari, ouvimos: “Tropicália, bananas ao vento” (no disco-manifesto Tropicália ou Panis et circensis, 1968).

Composta por Gil e Torquato, a canção apropria-se do termo “brutalidade jardim” de Oswald (em Memórias sentimentais de João Miramar, 1924). Na letra da música, a frase é antecedida por “hospitaleira amizade”. Contextualizados na cena do crime, os dois versos formam amarga legenda para o viralizado (em 1º de fevereiro) vídeo desesperado(r) de um jovem, amigo ou parente de Moïse, clamando por justiça, argumentando ainda que o “Brasil é uma mãe”.

Realizei o cinepoema O que há em ti, a partir de um vídeo viralizante de março de 2020: um haitiano anônimo depôs o presidente (“Bolsonaro, acabou”). Contrariado, confesso que a indignação me compele às imagens do circuito de vigilância de 2022; em sua descontinuidade lacunar, são assombrosas, justamente no limite do visível e do invisível. Em doze minutos, Moïse leva trinta pauladas, no tórax, nas costas e no pulmão. Ele também deve ter dito: “Não consigo respirar”, como George Floyd e João Alberto Silveira Freitas. Dá para imaginar a dor e a coragem da mãe de Moïse?

Moïse foi acolhido com a violência estrutural do país do seu não futuro e colhido (escolhido?) pela morte da qual fugiu em seu país de origem

Como Elza Soares (morta em 20 de janeiro o que a “mulher do fim do mundo” diria da atrocidade contra o irmão congolês?), Moïse também veio do “planeta fome”. Chegou ao Brasil em 2011, refugiado, fugido da guerra na República Democrática do Congo. Moïse foi acolhido com a violência estrutural do país do seu não futuro e colhido (escolhido?) pela morte da qual fugiu em seu país de origem.

No próximo sábado (5), há manifestações no Rio (na frente do quiosque maléfico) e em São Paulo (Masp). Há que se ver se o povo brasileiro vai se dividir entre os que se horrorizam com um assassinato no quiosque ou com a depredação de um quiosque. Aliás, quem é mesmo o dono do estabelecimento e quais as implicações com os assassinos? Ah, e quem matou (em 14 de março de 2018) Marielle Franco e Anderson Gomes?

O Moisés da África abriu um mar vermelho que, como na tétrica parábola da cratera paulistana, dá passagem a uma terra devastada, coagulada de sangues e dejetos, sem promessa de redenção. Da geleia geral ao esgoto ecumênico, extravasa a metáfora do vil valor da vida. Também de Gil e Torquato, outra canção tropicalista brada: “Aqui é o fim do mundo” (“Marginália 2”, do segundo disco de Gil, no qual, na capa, o em-2022-eleito imortal da Academia Brasileira de Letras veste um fardão em 1968).

No Brasil (cuja aquarela desbotada e dilacerada ainda canta “inzoneiro”?), agora o Congo será um longo banzo. Ouçamos a música do Congo por exemplo, Fally Ipupa (“Amore”) e Simaro Lutumba (“Ingratitude”). E para glosar mais uma canção, de Caetano e Gil justamente do disco chamado “Tropicália 2” (1993), que celebra 25 anos do manifesto , não é só o Haiti: doravante o Congo também é aqui.

Quem escreveu esse texto

Carlos Adriano

Doutor em cinema pela USP, escreveu Peter Kubelka: a essência do cinema (2002) e dirigiu o filme A voz e o vazio: a vez de Vassourinha (1998).