Desigualdades, Estado repensado,

O Estado é desigual, mas o mercado é pior

No setor público também há muitas disparidades associadas aos salários, ao sexo e à cor

01jan2023 | Edição #65

Todo mundo sabe que o Brasil é muito desigual e que esse fenômeno se manifesta de muitas formas, escancaradas ou sutis. Seria ingênuo pensar que, construindo e sendo construído por uma ordem social tão desigual, o próprio Estado não a espelhasse. A desigualdade está presente nos critérios mais usuais de hierarquia social: diferenças de poder, de salários e de prestígio. Em outros termos, é desigual o acesso às posições da alta burocracia, são consideráveis as diferenças remuneratórias e bem demarcadas as diferenças sociodemográficas entre ocupações mais e menos prestigiosas.

Se não surpreende encontrar desigualdades multidimensionais dentro da força de trabalho do Estado, a pretensão de constituir um funcionalismo ancorado na seleção meritocrática — o que não é o caso no setor privado — dá uma lufada de esperança de que as coisas podem ser melhores. Não são, embora a desigualdade no setor privado sirva como exemplo de que as coisas também podem ser muito piores.

Os funcionários federais recebem mais que os estaduais, e estes recebem mais que os municipais

Uma forma transversal de enumerar as desigualdades do funcionalismo é recorrer às remunerações. Desigualdades de sexo e cor estão claramente presentes nos salários. Mulheres recebem menos que homens nas médias de remuneração em cada um dos níveis federativos (municípios, estados e União) e em todos os poderes (Executivo civil, Legislativo e Judiciário). A situação não melhora muito quando controlamos por níveis de escolaridade e dividimos o funcionalismo público em décimos de renda.

Homens e brancos têm vencimentos, na média, superiores às mulheres e pessoas negras. No Poder Executivo federal, em 2020, o salário de negros com nível superior era quase 30% menor do que o de brancos com o mesmo grau de escolaridade. Mulheres negras tinham o menor salário entre as combinações interseccionais de sexo e cor. No prazo de uma década, quase não houve mudanças.

A desigualdade está entre as regiões, tanto no nível de emprego público per capita e de subfinanciamento de políticas nessas regiões quanto nas diferenças nas médias de remuneração. Regiões mais pobres têm menos servidores e seus salários são comparativamente mais baixos. Mas o cenário evoluiu visivelmente com a redemocratização e o esforço de universalizar políticas do Estado de bem-estar social também nas regiões mais pobres.

Níveis de governo

Há muitas disparidades também nas remunerações entre níveis e poderes. Os funcionários federais recebem mais que os funcionários estaduais, e estes recebem mais que os funcionários municipais — que hoje representam 60% do funcionalismo do país. O Judiciário se destaca entre os poderes. Desde meados dos anos 90, as carreiras jurídicas reforçaram seu status diferenciado: um grupo insulado no Estado, pouco diverso em termos sociodemográficos, que se descolou dos demais e instaurou um conjunto de privilégios funcionais e remuneratórios sem paralelo no funcionalismo nacional. Parte da fama negativa que irriga os estereótipos de supersalários no funcionalismo nacional, mais mito que realidade, vem do Judiciário.

Algumas métricas de desigualdade resumem nossa situação. O índice de Gini condensa a informação sobre a desigualdade de renda e pode ser aplicado para ver quão desigual é cada segmento do setor público em termos salariais. Quanto mais próximo de 1, mais concentrada é a renda dos salários. A desigualdade é menor que a observada no mercado de trabalho do país, embora existam limitações para a comparação. No Judiciário, o Gini caiu de 0,38 para 0,25 de 2001 a 2019. No Executivo municipal, caiu de 0,47 para 0,40 de 1999 a 2019. No Legislativo municipal, de 0,53 para 0,48. Ainda com a queda, a desigualdade é similar ao que se observa no Brasil em 2021: 0,49.

Outro meio para medir as desigualdades é calcular a razão das remunerações entre quem ganha mais e quem ganha menos. Tome-se o setor público federal. Os 10% no topo concentram 30% da massa salarial. Os 10% com menores salários recebem apenas 5%. A variação foi quase nula de 2010 a 2019. Nos estados, os 10% mais ricos têm 36% da massa salarial, e os 10% com menor salário têm 2%. Nos municípios, os 10% com maiores vencimentos recebem 32% da massa, e os 10% mais pobres, 3,5%.

Há critérios invisíveis, mas palpáveis, que retiram as mulheres das posições de poder na burocracia

O Judiciário federal novamente ilustra a desigualdade. O décimo com menor remuneração no Judiciário federal recebia em 2019 quase o dobro do que recebiam 90% dos funcionários públicos municipais. Por isso, aliás, as diferenças entre topo e a base no Judiciário são menores (assim como o Gini), já que a base começa com salários bem superiores aos demais segmentos.

Para cada uma dessas diferenças há os motivos que as tornam desigualdades. Há, por um lado, os critérios invisíveis, mas palpáveis, que retiram as mulheres das posições de poder na burocracia, embora elas sejam mais escolarizadas que os homens há trinta anos. O teto de vidro bem polido (que não se vê, mas não se trespassa) da ascensão ao poder para umas se torna o teto inexistente aos subterfúgios para burlar o limite máximo legal às remunerações no setor público. A ironia fez com que precisamente o Judiciário se capacitasse a burlar esse limite.

Igualmente importante é que as hierarquias ocupacionais da vida social se transferem, por homologia, para o mercado de trabalho no setor público. Isso acaba por reforçar o que o sociólogo Charles Tilly chamou de “desigualdades categóricas duradouras” de cor e de sexo, adaptando-as em diferentes espaços do mercado de trabalho, inclusive o público. Assim, as mulheres e as pessoas negras predominam em ocupações associadas ao cuidado e que pagam menos, em particular nos municípios. A homologia se repete também nas carreiras jurídicas federais, em que as mulheres se concentram no ramo trabalhista do direito que, por sua vez, se aproxima dos direitos sociais.

Concursos para poucos

No terreno da desigualdade, o diabo não está só nos detalhes. Um exemplo, imperceptível aos olhos do público, é o valor investido para participar de concursos públicos em carreiras mais disputadas, que exclui de antemão os mais pobres da prova — frequentemente negros que não podem pagar pelos cursos preparatórios nem pelas passagens para comparecer ao local do certame.

No outro extremo, e bem luminosos nas manchetes dos jornais, estão os “penduricalhos” que segmentos do setor público encontram para ganhar salários indecorosos, sendo um dos mais recentes uma coisa chamada “honorários de sucumbência”, valor pago aos advogados públicos, tais como advogados da União e procuradores, por vencerem causas que têm a União como uma das partes, e que representou um acréscimo salarial per capita de R$ 10 mil, em 2020.

Mesmo nos governos de esquerda — e após a criação de estruturas institucionais para diversificar o perfil de quem detém poder — houve mais estabilidade que mudança (por exemplo, na métrica de quem ocupa a burocracia do alto escalão). Como apontam os estudiosos da desigualdade, vontade política é apenas um dos ingredientes necessários para mexer em uma engrenagem que não altera fácil seu funcionamento.

Mas a coisa poderia ser pior: em 2021, 1% da população brasileira se apropriou de 26% da renda e de 49% da riqueza; a diferença salarial entre os 10% com maior e os 50% com menor renda era de 29 vezes. O setor público está longe de ser tão desigual nesse quesito. Mas a desigualdade persistente revela que não será simples mobilizar a indignação de quem formula políticas públicas. Aqui, como tem sido a tendência mundo afora, conter a pobreza é mais possível do que domar a desigualdade. 

Quem escreveu esse texto

Felix G. Lopez

É pesquisador do Ipea e autor de Cargos de confiança no presidencialismo de coalizão brasileiro (Ipea).

Matéria publicada na edição impressa #65 em outubro de 2022.