Desigualdades,

Democracia para todos

Desde 1997, as reformas eleitorais aumentaram para 15% a participação de mulheres na Câmara

01out2022 | Edição #62

A teoria política denomina de “democracia representativa” a forma contemporânea como a soberania popular é exercida por intermédio de órgãos representativos — os partidos políticos. De acordo com a cientista política italiana Nadia Urbinati, a representação se funda na teoria do consentimento, segundo a qual a eleição é compreendida como a expressão do direito de participar, em algum nível, da produção das leis.

Nas democracias representativas, as eleições ocupam um papel central, uma vez que são o mecanismo que legitima a escolha e o mandato dos representantes. Em What is Democracy? (2004), Larry Diamond aponta quatro elementos-chave da democracia: 1) um sistema político para escolha e substituição de governos por meio de eleições justas e livres; 2) a participação ativa das pessoas, como cidadãos, na política e na vida cívica; 3) a proteção dos direitos humanos para todos os cidadãos; e 4) a aplicação das regras da lei igualmente a todos os cidadãos. Não por acaso, a previsão de eleições é o primeiro dos quatro elementos identificados pelo autor.

No artigo “Democracia e desenvolvimento na América do Sul”, publicado em 1994, Adam Przeworski e Fernando Limongi afirmam que as democracias são regimes políticos nos quais os principais postos de governo são ocupados como resultado da disputa eleitoral aberta e regular. Przeworski, em seu clássico Minimalist Conception of Democracy: a Defense (1999), complementa a definição anterior ao defender que a democracia é um sistema que garante, mediante eleições, a transferência pacífica de poder. Assim, ainda que, sozinhas, não sejam suficientes para definir um regime democrático, as eleições são absolutamente necessárias a ele, de modo que não poderá ser considerado democrático regime algum que viole o critério eleitoral como processo de circulação de e no poder.

Como as eleições ocupam papel tão importante no debate sobre democracia e representação política, é fundamental entender o funcionamento do sistema brasileiro e o desenho e os efeitos esperados das mudanças mais recentes, as “reformas” eleitorais.

A Lei das Eleições inovou ao reservar 30% das vagas de candidatos aos legislativos a ‘candidatos de cada sexo’

O sistema adotado no Brasil, conhecido como sistema proporcional de lista aberta, permite aos eleitores ordenar a lista por meio da indicação de suas preferências. Difere, principalmente, do seu irmão denominado lista fechada ou preordenada, modelo em que os dirigentes partidários definem a ordem dos candidatos na urna antes do início do período eleitoral, e aos eleitores cabe apenas escolher o partido de sua preferência. Ou seja, no sistema de lista fechada, não cabe ao eleitor interferir na ordenação — nas chances de candidatos específicos conseguirem se posicionar melhor na lista e aumentarem suas chances de se eleger.

O sistema proporcional de lista aberta é adotado no país desde 1932, tendo sido referendado pela Constituição de 1988. Desde então, já foram feitas muitas alterações no intuito de ajustar e aperfeiçoar nosso sistema eleitoral, as chamadas “reformas eleitorais”.

A primeira coisa a saber sobre as reformas eleitorais é que pequenas mudanças podem levar a grandes consequências. A segunda é que os efeitos dessas mudanças são cumulativos e nem sempre ocorrem da noite para o dia. A repetição do jogo ao longo do tempo aprofunda a forma como os atores respondem aos incentivos institucionais. Reformas eleitorais, amplas ou pontuais, podem, portanto, ocorrer de uma eleição para outra, mas também é possível observar tendências que se aprofundam ou desvanecem ao longo do tempo.

A fim de vislumbrarmos novas formas de comportamento de eleitores, candidatos e partidos, tentamos esboçar aqui um pequeno e não exaustivo sumário das mudanças mais recentes no sistema eleitoral e em áreas afins.

Os esforços para aumentar a inclusão das mulheres no Poder Legislativo são a primeira mudança a destacar quando o debate se volta à ampliação da representação descritiva, aquela que entende como desejável que as esferas de poder reproduzam demograficamente a sociedade, ou, dito de outra forma, que os representantes tenham origens semelhantes aos seus representados. A chamada Lei das Eleições, aprovada em 1997, inovou nesse ponto ao estabelecer que os partidos devem reservar 30% das vagas disponíveis em suas listas de candidatos às casas legislativas “para candidatos de cada sexo”.

O objetivo era aumentar a presença de mulheres candidatas e, como consequência, aumentar a presença de mulheres no Legislativo. Todavia, não foi isso o que se observou: os partidos reservavam as vagas, mas não as preenchiam. Por exemplo, se um partido pudesse apresentar uma lista com até 25 candidatos, 8 vagas eram reservadas para mulheres, mas muitas vezes a lista de candidatos contava apenas com 17 homens, não sendo preenchidas as 8 vagas reservadas às candidaturas de mulheres.

A Lei 12.034, de 2009, mudou esse cenário ao definir que no mínimo 30% dos candidatos registrados pelos partidos nas listas para as disputas proporcionais deveriam ser “de cada sexo”. Assim, de cada três candidatos que um partido registrasse, necessariamente um passou a ser mulher. A nova redação forçou, portanto, os partidos a aumentar a presença das mulheres em suas fileiras de candidatos, mas isso não se traduziu imediatamente em aumento na presença de mulheres nas casas legislativas.

Foi somente em 2018 que vimos um aumento significativo da presença de mulheres na Câmara

Foi somente em 2018, quando se passou a exigir a destinação de 30% dos recursos públicos para candidaturas femininas — decisão da Justiça Eleitoral posteriormente referendada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) —, que vimos um aumento significativo da presença de mulheres na Câmara dos Deputados: um salto de 10% para 15%. Ainda assim, trata-se atualmente de um dos menores índices das democracias ocidentais.

Reserva de candidaturas

Essa decisão da reserva de recursos para as candidaturas femininas foi sacramentada pela Emenda Constitucional 117, de 2022. Espera-se que, com a garantia de recursos destinados às candidaturas de mulheres, possamos observar não apenas a consolidação do novo patamar de 15%, mas um gradual aumento da presença de mulheres no Legislativo e também no comando de postos no Poder Executivo.

Outra mudança que pode favorecer o aumento da presença de mulheres, bem como a de negros, foi a prevista na Emenda Constitucional 111, que define que, para fins de distribuição dos recursos do fundo partidário e eleitoral, serão contados em dobro os votos dados a candidatas mulheres ou a candidatos negros para a Câmara dos Deputados nas eleições de 2022 a 2030. Há ainda decisão judicial que orienta a distribuição dos recursos públicos entre os candidatos de forma proporcional à presença dos grupos raciais nas listas partidárias. O objetivo é aumentar o incentivo para que partidos apostem em candidaturas de mulheres e negros mais competitivas.

Mas nem tudo são flores, e algumas mudanças aprovadas desde 2017 com o intuito de diminuir a fragmentação legislativa têm como consequência indireta o favorecimento dos candidatos que já têm mandato — tanto aqueles que tentam a reeleição como aqueles que ocupam cargos em outras esferas e buscam novos postos. Como sabemos, em sua maioria são homens e brancos. A minirreforma eleitoral de 2017 (Emenda Constitucional 97/2017 e leis 13.487 e 13.488), além de abolir as coligações para eleições proporcionais (regra que só começaria a valer no pleito de 2020), implementou uma cláusula mínima de desempenho eleitoral para que os partidos acessem recursos públicos.

Já nas eleições municipais de 2020 pudemos observar como os partidos políticos tentaram responder nesse novo ambiente. O principal comportamento modificado foi a coordenação dos partidos políticos, os quais, diante da impossibilidade de alianças, deixaram de lançar candidatos que eram eleitos se aproveitando do bom desempenho do “cabeça” da coligação. O movimento observado foi que mais partidos lançaram menos candidatos em suas listas, contudo com maior potencial de vitória desses nomes. O resultado foi uma redução do número de partidos, principalmente em grandes municípios. Podemos esperar comportamento semelhante nas assembleias estaduais e na Câmara dos Deputados neste ano de 2022.

O segundo, e estranho, ponto é a modificação estabelecida pelas quotas individuais de desempenho para a distribuição das sobras (lei 14.211/2021). De acordo com a nova regra, só poderão disputar as sobras — aquelas cadeiras não alocadas pelo cálculo do Quociente Partidário (qp) — os partidos que tiverem votação correspondente a, no mínimo, 80% do quociente eleitoral (qe) de seu estado e, estando habilitada a legenda, o candidato que tiver angariado preferência dos eleitores que corresponda a pelo menos 20% do qe. Em si, a regra é um requisito mais elevado do que o desempenho individual de 10% do qe exigido para ocupar cadeira na rodada inicial da distribuição. Ou seja, partidos pequenos que conseguiam um ou outro assento mirando as sobras terão mais dificuldade, e poderemos ter o caso de um deputado que dispute as sobras e não seja eleito, apesar de ter obtido mais votos do que um candidato que entrou na primeira rodada da distribuição.

Federações partidárias

A reforma de 2021 também instituiu as federações, último suspiro dos partidos pequenos para tentar sobreviver, certamente um incentivo que vai no sentido oposto da desfragmentação do sistema. Sua concretização não é um retorno às coligações, já que, diferentemente destas, as federações não se restringem ao período eleitoral, são nacionalizadas e, se desrespeitarem a vigência mínima de quatro anos, acarretam sanções aos partidos. Ainda assim, sua adoção deu novo fôlego a partidos que teriam dificuldade em cumprir a cláusula de desempenho. A cláusula, que em 2022 será de 2% dos votos válidos nacionais de deputados federais, ou alternativamente a eleição de onze deputados, permite ao partido continuar tendo acesso aos polpudos recursos públicos a partir de 2023. Isso já ocorreu com Rede, Patriota, phs, dc, pcb, pco, pmb, pmn, prp, prtb, pstu e ptc, que contaram desde 2018 apenas com o fundo eleitoral, e não mais com o fundo partidário. Cidadania, pcdob, pv, psol e Rede, por outro lado, optaram por formar federações como tentativa de manter a cabeça fora d’água.

De forma complementar, a abundância de financiamento público pode provocar uma ligeira diminuição na renovação parlamentar — são R$ 4,9 bilhões do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (fefc) e R$ 1,1 bilhão do Fundo Partidário. Não imaginamos que as taxas de reeleição ficarão distantes de 50%, como historicamente o Brasil apresenta. Mas é possível imaginar que candidatos estabelecidos em busca de reeleição tenham maior facilidade de capturar recursos para suas campanhas. Como noticiou a Folha de S. Paulo, 87% dos deputados estão em busca de novo mandato, o que deve tornar a vida dos desafiantes um pouco mais dura. Isso também se deve ao caráter de “não novidade” de Bolsonaro e seus apoiadores, que agora estão no PL, um partido estabelecido e com muitos políticos de carreira e que não terá o mesmo papel renovador do PSL, tomado em 2018 pela onda bolsonarista.

A mudança no centro gravitacional do poder federal tornou a carreira de deputado mais atraente

Além disso, a mudança no centro gravitacional do poder federal torna a carreira de deputado cada vez mais atraente. A liberdade das emendas de relator fez com que a conexão paroquial e a capacidade de atender prefeitos que se tornam cabos eleitorais de deputados fossem potencializadas, tanto na base governista como na oposição. Haverá, portanto, maior interesse de prefeitos em ter um deputado para atendê-los na tradicional “marcha dos prefeitos”, assim como mais deputados interessados em manter seu mandato em vez de tentar um cargo diferente, como senador ou prefeito de média ou grande cidade, o que torna mais difícil a vida dos candidatos “desafiantes”.

Como dito anteriormente, a porta aberta pelas recentes decisões que favorecem o acesso aos recursos públicos pode ajudar a contornar essas barreiras, mas é fundamental que os recursos sejam distribuídos de forma estratégica. Partidos e grupos organizados da sociedade precisam identificar quais candidatos priorizar e, então, concentrar seus recursos e esforços nesses candidatos. A dispersão dos recursos de forma igualitária entre todos os candidatos, conforme defendida por alguns setores, não permitirá que nenhum candidato se diferencie e concorra em condições mais próximas às dos que estão buscando a reeleição, o que pode dificultar o sucesso eleitoral desses grupos que hoje reivindicam aumento de sua presença no Legislativo.

Quem escreveu esse texto

Lara Mesquita

Cientista política, é pesquisadora da FGV-EESP

Bruno Bolognesi

Cientista político, é professor na ufpr e coordenador do Laboratório de Partidos e Sistemas Partidários

Matéria publicada na edição impressa #62 em julho de 2022.