Crítica Literária,

Um memorial memorável

Documento acadêmico de Antonio Candido revela pistas sobre a vida pré-currículo Lattes

01abr2023

Não somos apenas o país do samba e do futebol, mas também o país do memorial acadêmico. Até existem gêneros autobiográficos parecidos em outros lugares do mundo, como a autobiografia intelectual (bastante em voga na França), mas nada que corresponda exatamente ao nosso formato.

Sim, o memorial acadêmico é coisa nossa, apesar de quase ninguém o conhecer, mesmo na academia. Isso foi algo que logo descobri — a cada apresentação da minha pesquisa de doutorado, precisava gastar alguns dos já exíguos quinze minutos que nos são dados para comunicar uma tese explicando o que é um memorial.

Trata-se de um gênero de texto em que um professor universitário — ou almejante ao cargo — precisa recriar seu percurso intelectual e profissional, levando em consideração que a trajetória será depois examinada e julgada por uma banca de avaliadores em concursos próprios da esfera acadêmica.

É muito trabalhoso escrever um memorial, digo por experiência própria. Não só porque não é fácil encontrar algum sentido no emaranhado de fatos que constitui nossas vidas, mas também porque, além de contar a própria trajetória de forma minuciosa — o que pode ser constrangedor para alguém que passou a vida aprendendo a escrever em terceira pessoa —, tudo o que está dito precisa vir atestado por uma enorme quantidade de documentos, numerados e organizados em arquivos que parecem sempre incompletos.

Ler o texto de Candido é encontrar o educador, o teórico, o humanista, o intelectual, o homem

Apesar de todo o sofrimento causado, esse é um gênero que vem perdurando. O exemplar mais antigo encontrado pelas pesquisadoras Sandra Cristinne Câmara e Maria da Conceição Passeggi, que se dedicaram a estudar a origem do gênero, data de 1936. O texto do dr. Paulo Enéas Galvão foi apresentado para o concurso de professor catedrático de “chimica organica e biologica” na Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de São Paulo (USP).

Desde então, muitos memoriais foram produzidos — alguns se aproximando de um currículo estendido, objetivo, narrado em terceira pessoa; outros de uma autobiografia da vida escolar e profissional, com pitadas de infância e relações pessoais, escrita em primeira pessoa. Os exemplares mais recentes que consultei se aproximam mais do último tipo, às vezes apresentando um tom mais poético, com abundância de figuras de linguagem; outras mais irônico, com farto uso de aspas; ou, ainda, mais emotivo, com sequências de adjetivos e pontos de exclamação, entre tantos outros tons possíveis de se criar com a escrita.

Professor múltiplo

Não é esse o caso do memorial do professor Antonio Candido, apresentado para o concurso de professor titular do Departamento de Linguística e Letras Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da usp em 1974. Em 29 páginas datilografadas, o professor organiza sua vida por meio de relatos em terceira pessoa e algumas listas, seguindo o estilo de memorial da época. Sobre a “Constituição de equipe”, por exemplo, lemos que “o candidato se preparou desde logo em formar uma equipe, que pudesse continuar e desenvolver as atividades da disciplina recém-criada”, ou ainda que “o primeiro elemento recrutado, Roberto Schwarz, foi encaminhado com este intuito para os Estados Unidos no fim de 1961”.

Quem imaginava (como eu) que, ao ler o memorial, seria imediatamente transportado para a casa do professor, num encontro regado a café e a causos, pode, inicialmente, se sentir decepcionado, achando que o memorial de Candido não nos deixa ver o homem. Mas não é bem assim.

Com um pouco mais de atenção, conseguimos flagrar, na divisão em tópicos e subtópicos exemplarmente organizados, na clareza do texto e em declarações como “seria preciso mencionar ainda a atenção constante em relação à análise literária como atividade central do ensino”, o mestre e professor, sempre atento à sala de aula. Já o teórico da literatura pode ser depreendido de seus posicionamentos a respeito dos estudos literários: “O esforço básico tem sido, desde que as posições teóricas e a prática adquiriram certa maturidade, reconhecer três momentos válidos na atividade crítica: enfoque do texto em sua autonomia relativa; consideração dos elementos de personalidade e sociedade; tentativa de estudar estes, não como enquadramento ou causa, mas como constituintes da estrutura”. O humanista, por sua vez, revela-se na lista de professores que o marcaram e em sua formação ampla e consistente no campo das humanidades; enquanto o intelectual de esquerda, preocupado com o futuro das universidades e do país, pode ser encontrado no modo de compreender a teoria literária, na atenção dada à criação da área numa universidade pública brasileira e ainda no espaço dedicado a isso no memorial.

O encontro com o memorial de Candido é também o encontro com o educador, o teórico, o humanista, o intelectual, o homem. Suas páginas me permitiram aprender com o professor, mesmo sem ter frequentado suas aulas. Está aí, talvez, a graça e a beleza de ler memoriais acadêmicos.

Quem escreveu esse texto

Mariana Luz Pessoa de Barros

É professora da Universidade Federal de São Carlos e editora da revista Estudos Linguísticos.