As Cidades e As Coisas,

A cidade de mulheres ocultadas

Placas de ruas resgatam as histórias submersas de mulheres que trouxeram vida à cidade de São Paulo

12mar2021 | Edição #43

Os nomes que marcam São Paulo também marcam a nossa memória. Quando pensamos sobre a cidade, é comum que nos lembremos das grandes figuras, dos que governaram, construíram ou que se tornaram famosos em alguma esfera da vida pública. Seus nomes estampam praças e avenidas, ruas e prédios. A cidade da arquitetura de Ramos de Azevedo está marcada em cada esquina do centro histórico. Não passa despercebido quais características uma pessoa deveria ter para ser considerada parte do que deve ser lembrado sobre uma cidade, para ocupar espaços oficiais de memória, nomes e placas, a começar pelo gênero.

No final do ano passado, o Departamento do Patrimônio Histórico da Cidade de São Paulo promoveu o concurso Placas da Memória Paulistana, com a intenção de retomar memórias urbanas das quais já não nos recordamos mais. Contribuí com o resgate da história de dois espaços que rememoram justamente as mulheres da cidade, aquelas cuja profissão era considerada indigna ou mesmo marginal, mas que atuaram como partes indissociáveis da vida urbana. Esse resgate, feito com base na consulta de documentos históricos, escrituras públicas, certidões, processos judiciais da época e notícias antigas de jornais (parte de uma tese de doutorado sobre a relação dos Excluídos da História com a cidade da autora), revela a presença feminina na cidade, livre dos recortes à que foram submetidas ao longo do tempo.

Mulheres, prostitutas e cafetinas que dividiram o espaço do centro da cidade e seus arredores com as grandes óperas do Theatro Municipal e que tiveram suas vidas silenciadas pelo desenvolvimento urbano, como se jamais tivessem ousado habitar, frequentar e dar vida àqueles espaços.

Donas do cabaré

Quando olhamos para o prédio que hoje abriga o Shopping Light, na esquina da rua Xavier de Toledo com o Viaduto do Chá, nem sequer notamos que ele é constituído por dois imóveis distintos. Se olharmos mais de perto, percebemos que, ainda que estejam fundidos, são dois espaços, com duas histórias, que se uniram com as transformações da cidade — um deles fora dirigido e ocupado por mulheres.


À direita, o andar térreo, com a fachada remanescente do imóvel que sediou o Tabaris Dancing. Na esquina, com toldos vermelhos, o Edifício Alexandre Mackenzie, transformado no Shopping Light. Ao fundo, o Hotel Esplanada e, à sua esquerda, o Theatro Municipal. [Rafaela Netto] 

Vista do imóvel da rua Xavier de Toledo. Nota-se a manutenção da fachada, ainda que envelopada, e a parte interna agora tomada pelo Shopping Light. [Rafaela Netto]

O Tabaris Dancing – ou Cabaré Máximo – foi um dos espaços mais importantes do alto meretrício na cidade de São Paulo no início do século 20. Abrigado no edifício construído em 1911, o cabaré funcionou ao lado de locais icônicos da cidade, como o Theatro Municipal, e era frequentado por membros da elite paulistana, como a família Campos Salles.

Pouco se sabe sobre as mulheres que administraram o espaço, sendo conhecidos apenas os seus nomes. Nos documentos, constam como responsáveis pelo local Salvadora Rojas, Clara Ravello e Anita Montenegro. Sabemos ainda menos sobre as mulheres que trabalharam no local — o pouco que é conhecido vem de algumas notas de jornal e processos-crime, em que são tratadas apenas pelo primeiro nome, sem fazer qualquer outra referência às suas vidas.

Nos anos 2000, o imóvel que abrigou o cabaré foi unido ao edifício vizinho, o Alexander Mackenzie — batizado em homenagem ao advogado canadense e vice-presidente na época da Light & Power Company, antiga fornecedora de energia da cidade sediada no local — promovendo assim um novo apagamento. Desta vez, a aniquilação foi visual: o espaço se tornou praticamente invisível aos olhos dos passantes ao ser incorporado como parte do Shopping Light. A placa da memória ali instalada em 2020 direciona nosso olhar para que paremos para refletir sobre a história por trás do que está diante dos passantes, para revelar as mulheres que antecederam o shopping.


Placa instalada na Rua Xavier de Toledo, n. 23 [Maíra Rosin]

Marcante e marcada

Outra mulher cuja história é lembrada por uma das placas da memória é Nenê Romano. Nascida na Itália, Romilda Machiaverni – que adotou o nome Nenê Romano na prostituição – foi uma das mulheres mais desejadas da cidade no início do século 20.

Sua história tornou-se famosa quando, em 1918, Romano foi surpreendida ao chegar a sua casa, na Rua Bento Freitas, n. 3, e receber em seu rosto um violento golpe de navalha a mando da Sinhazinha Junqueira, enfurecida de ciúmes após seu marido cortejar Romano em um desfile de carnaval na avenida Paulista. O “Crime da Rua Bento Freitas” ficaria famoso nas páginas do jornal O Combate, bem como o belo rosto de Nenê, que ficou marcado.


Nenê Romano [Acervo pessoal Paula Janovitch]

Nenê Romano. Na imagem, é possível ver em seu rosto e pescoço a cicatriz provocada pela navalhada. A imagem havia desaparecido do processo sobre o crime e foi recuperada pela historiadora Paula Janovitch, que a recebeu do delegado Milton Bednarski. A foto da foto foi feita no "Museu do Crime", mantido pelo delegado até sua morte na rua Cásper Líbero. [Acervo pessoal Paula Janovitch]

Após um longo processo contra as mulheres que haviam sido mandantes de sua agressão, Romano saiu vitoriosa e apaixonada pelo advogado que defendia as Junqueira, Moacyr de Toledo Piza. De uma família abastada e participante das mais altas rodas da sociedade paulistana, Toledo Piza mantinha um relacionamento e sentia um violento ciúme de Romano, que vivia a cidade como poucas mulheres ousavam fazer nos anos 1920.

Ele chegou a publicar um livro, Roupa Suja, em que sugeria que o homem que mantinha Romano era Washington Luís, à época presidente do estado de São Paulo. Além do ciúme que Toledo Piza sentia por Romano, o livro foi a razão do rompimento do relacionamento. Em 25 de outubro de 1923, dia em que Romano completava 26 anos de idade, Toledo Piza a matou com cinco tiros dentro de um carro de aluguel na esquina da avenida Angélica com a rua Sergipe, cometendo suicídio na sequência.


Capa do livro Roupa Suja (1923), de Moacyr Toledo Piza

Ele foi homenageado pela Câmara dos Vereadores, que batizou uma das ruas da cidade com seu nome. Romano não só foi esquecida, mas considerada culpada pela imprensa pelo próprio destino e por ter provocado o suicídio de um homem tão importante para a cidade.

A proposta dessa placa — que ainda será instalada pelo Departamento de Patrimônio Histórico de São Paulo na esquina da rua Bento Freitas com a rua Santa Isabel, local onde Romano viveu — retoma, portanto, a vida de uma mulher que viveu a cidade e cuja memória se deturpou e se esvaiu. Uma mulher que, como tantas outras, por viver fora das normas foi não só vítima de feminicídio, como culpabilizada pela própria morte.

Meretrizes da cidade

Para falar de mulheres sempre estamos entre o sagrado e o profano, como se as figuras femininas precisassem ocupar esses espaços formatados, como se suas formas de existência estivessem sempre compreendidas entre o lar e os bordéis. Às mulheres foi negada a própria existência enquanto indivíduo histórico, ainda mais no que se refere às relações das mulheres com o espaço urbano. A elas foi negada a permanência nas ruas e as que ousaram ocupar este espaço foram associadas à prostituição.

O abafamento dessas mulheres foi contínuo e incisivo no decorrer do século passado. Na década de 1930, bordéis e prostitutas foram perseguidos pela administração pública paulistana, com grandes investidas nesse controle por parte da Delegacia de Costumes e Jogos e, posteriormente, pelo Departamento de Cultura, chefiado pelo poeta modernista Mário de Andrade. Em 1940, após o início das obras do Plano de Avenidas de Prestes Maia, a prostituição foi confinada no Bom Retiro, com maior foco para a rua Itaboca. A “zona” ficaria restrita ali até o ano de 1953. Nesse período, mais de mil mulheres — conhecidas por “polacas”, mulheres judias do Leste Europeu que vieram, em sua maioria, como vítimas de tráfico para o Brasil — exerceram o meretrício no local.

Proposta pela historiadora Paula Janovitch, uma placa relembra o lugar que teve sua identidade apagada. No mesmo ano de1953, a rua Itaboca passou a se chamar rua Cesare Lombroso, retirando sua existência do mapa. Não por acaso, o médico italiano Cesare Lombroso foi um dos fundadores da teoria do determinismo biológico, tendo como uma de suas obras mais famosas A mulher delinquente: a prostituta e a mulher normal.


Antiga zona do meretrício da Rua Itaboca, atual Rua Cesare Lombroso. [Enya Café]

O apagamento, comum à história das mulheres, é também parte de como construímos a memória dos espaços que ocupamos. Mulheres normalmente exercem papéis privados mesmo que estejam em espaços públicos. Seus comportamentos sempre devem se adequar às normas sociais e morais, estando sempre vigiadas, formando um corpo anônimo que habita os espaços urbanos e sendo marcadas sempre sob a ótica do sistema patriarcal.

A cidade tratou de silenciar suas vozes, ainda que estivessem em grande presença nas ruas, vivendo o mesmo espaço construído destinado aos homens. Quando nos encantamos com construções de grandes arquitetos ou com espaços que levam nomes dos grandes homens da cidade, esquecemos daquelas que fizeram da cidade viva.

O meretrício não é apenas parte da cidade, o meretrício é a própria cidade. Ele determina fronteiras, espaços de exclusão e de ações de controle por parte do poder público. É o local que todos conhecem, mas que fingem nunca pisar.  E as placas, essas vêm sinalizar uma história submersa, que irrompe a memória oficial, trazendo à tona a vida de mulheres que ocuparam a cidade e sobreviveram em lugares marginais.

Quem escreveu esse texto

Maíra Rosin

É historiadora e doutora em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo. Pesquisa as relações dos excluídos e marginalizados da História com a cidade.

Matéria publicada na edição impressa #43 em fevereiro de 2021.