As Cidades e As Coisas,

Cartografias da pandemia

A utilização de mapas no combate à Covid-19 abre brechas para práticas de controle

01maio2020

Mapas são instrumentos poderosos. Sua utilização ao longo da história teve diversas finalidades, inclusive no combate a doenças e epidemias. A relação entre a representação do espaço urbano e a saúde pública é antiga — inúmeras cartografias foram desenvolvidas em parcerias entre pesquisadores das áreas da geografia e da medicina. O exemplo mais conhecido é o mapa da cólera na cidade de Londres, elaborado por John Snow em 1850. Com base no mapeamento dos endereços de residência das pessoas que à época morreram pela doença misteriosa, percebeu-se que a maioria das mortes estava próxima a pontos da rede de distribuição de água. Assim, foi possível descobrir que a cólera era transmitida a partir da ingestão de água contaminada.

Em tempos de pandemia da Covid-19, os mapas são novamente utilizados como instrumento de combate. Entretanto, a cartografia atual é totalmente diferente daquela do século 19. A multiplicação de ferramentas digitais de georreferenciamento tornou possível que pessoas sem formação técnica em cartografia passassem a elaborar e compartilhar mapas. Por outro lado, essas mesmas tecnologias de georreferenciamento, associadas aos dados produzidos por nossos smartphones, abrem brechas para práticas de controle e vigilância até então nunca experimentadas.

Vários mapeamentos estão sendo produzidos no intuito de compreender — e combater — a pandemia atual. Podemos dividir essa produção em duas categorias: as cartografias institucionais, desenvolvidas por governos e empresas privadas de tecnologia, e as cartografias ativistas, produzidas por pesquisadores, coletivos e movimentos sociais, com leituras que complementam ou questionam as cartografias institucionais.

 

Vigilância e ativismo

Em São Paulo, o Governo do estado mobilizou recursos para o monitoramento do isolamento social, por meio de cartografias que mostram o grau de cumprimento das medidas de isolamento por distritos. Embora garanta que a privacidade das pessoas não será afetada, esse mapeamento é também um laboratório de monitoramento em massa, controlando, em tempo real, o deslocamento das pessoas pela cidade. 

A partir de dados das principais companhias telefônicas, o governo está acompanhando os índices de isolamento nos diferentes locais da cidade. Desta maneira, ganham força as narrativas de maior rigor no cumprimento dessas medidas, inclusive com uso de força policial. Todavia, não observamos o mesmo esforço tecnológico no sentido de monitorar o avanço da pandemia na cidade, em especial nos territórios mais vulneráveis. 

Por mais que já apontem para o crescimento do número de casos de contaminação e óbitos em maior proporção nas periferias, os poucos dados existentes estão em linguagem técnica que dificulta sua leitura para a maior parte da população. Esse é um dos componentes que agravam a incompreensão acerca da real situação da doença em cada bairro, deixando as pessoas à mercê de notícias falsas divulgadas em grupos de WhatsApp. Esses dados, disponibilizados em boletins epidemiológicos no site da Secretaria Municipal de Saúde, são fechados e elaborados de uma forma que dificulta sua análise.

Por outro lado, esses dados, divulgados a partir de boletins epidemiológicos no site da Secretaria Municipal de Saúde, são fechados e elaborados de forma que dificulta sua análise. Até o momento foram publicados dois boletins (em 31 de março e 14 de abril): o primeiro apresentou informações do número de casos e óbitos confirmados por hospital (apenas aqueles que testaram positivo para Covid-19); o segundo apresenta, por distritos, os casos e óbitos confirmados e também os suspeitos (que ainda não foram testados). A diferença na unidade de análise (hospitais no primeiro e distritos no segundo boletim) impede uma leitura comparativa precisa dos dados. Merece destaque o fato de que ambos os documentos não apresentam informações georreferenciadas sobre a ocupação de leitos, apenas números absolutos.

Enquanto isso, multiplicam-se as cartografias produzidas por grupos de pesquisa vinculados às universidades públicas. São leituras em escala municipal, estadual e nacional que analisam o avanço da Covid-19 e propõem leituras críticas acerca das medidas adotadas. Um exemplo é o trabalho desenvolvido pelo LabCidade, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), com uma série de análises dos impactos do coronavírus e das ações estatais no campo urbanístico.

As cartografias ativistas trazem olhares que complementam os mapas institucionais

Cartografias elaboradas por coletivos e movimentos sociais privilegiam a escala local, dos bairros e favelas. A maioria desses mapeamentos facilita as redes de doação e ajuda, como o Mapa Corona nas Periferias e a Rede de Apoio Humanitário nas e das Periferias. Outros dão visibilidade aos impactos da Covid-19 na vida cotidiana, como o trabalho do Observatório De Olho na Quebrada, que vem produzindo relatórios com os impactos na economia local de Heliópolis. 

Temos ainda os grupos que vêm desenvolvendo mapeamentos e ações territoriais de apoio à população em situação de rua. Um exemplo é o “mapa malokeiro das bocas de rango” (lugares em que a população de rua encontra alimentação), que está sendo distribuído como “lambes” colados nas paredes pelo coletivo autônomo A Craco Resiste no centro da cidade.

A aposta do governo do Estado nos sistemas de monitoramento da população reforça a ideia de que a adesão às orientações de isolamento social é uma opção individual, o que pode justificar a adoção de medidas repressivas contra a população que não obedecer. Trata-se de uma visão, no mínimo, perversa. Pois a maior parte da população não tem condições de se isolar, seja por questões financeiras e de sobrevivência, seja pelas características de suas residências. 

Portanto, mais importante do que monitorar se as pessoas estão “respeitando o isolamento” é mapear aqueles que precisam de apoio para conseguir se isolar. Ou seja, atingir a meta de 70% de isolamento social só é possível com políticas públicas emergenciais que garantam a todos as condições necessárias. 

Possíveis caminhos

Há alguns caminhos à vista. A ampliação da renda emergencial para cobrir os gastos das famílias e a oferta de moradia temporária para parte dessas pessoas (em especial os moradores de rua), tal como proposto pela campanha Quartos da Quarentena, que sugere a utilização da rede hoteleira ociosa.

É também fundamental que os dados territorializados sobre casos e óbitos decorrentes da Covid-19 (confirmados e suspeitos) e leitos ocupados e ociosos sejam disponibilizados e atualizados de forma constante, em uma plataforma de fácil acesso, com envios automatizados via WhatsApp com informações simples e diretas sobre a situação de cada bairro e região. Esse acompanhamento é também estratégico para definir medidas emergenciais, como a construção de hospitais de campanha e a melhor distribuição de recursos humanos, equipamentos e insumos.

Por último, mas não menos importante, as cartografias ativistas trazem olhares que complementam os mapas institucionais. Profissionais de diferentes áreas do conhecimento estão mobilizados para atuar em escala local contra o novo coronavírus. No entanto, a ausência das políticas públicas impõe um limite a essas ações. Em outras situações, a presença do Estado acaba por atrapalhar, como no caso da Cracolândia, onde a violência institucional aumenta a situação de vulnerabilidade dos usuários e criminaliza a atuação de coletivos e organizações da sociedade civil. 

É fundamental que o poder público articule e dê condições a essa inteligência e força de trabalho voltadas ao combate à pandemia. Isso passa por várias questões, que vão desde a abertura de dados até o apoio financeiro e logístico a coletivos e movimentos sociais. O momento pede colaboração e articulação de diferentes atores em diferentes escalas. Para tanto, as cartografias são instrumentos imprescindíveis.

Quem escreveu esse texto

Aluízio Marino

É pesquisador do LabCidade (FAU-USP).