Livro e Leitura,

O som dos livros

De Sófocles a Haroldo de Campos, Patti Smith e Neil Gaiman, as possibilidades poéticas que o audiolivro abre para todos os leitores

25fev2021 | Edição #43

Acho que foi no dia em que tive alta do hospital, depois de sete meses de tratamento e sete cirurgias, que um dos médicos me chamou para passear no corredor e me deu a Bíblia em CD. Tinha ido ao oftalmologista porque não estava mais conseguindo ler e saí cega, em decorrência em um erro médico, e com meu primeiro audiolivro, a palavra de Deus gravada. 

Comecei a usar tecnologias assistivas, como audiolivros e leitores de tela de celular e computador, para participar da realidade compartilhada. Isso é garantido pelo artigo 42 do Estatuto da Pessoa com Deficiência, lei federal 13.146/2015, que confirma o direito à experiência de bens culturais em formato acessível. No entanto, a fiscalização é falha, e não são especificados os formatos acessíveis para cada caso. Aos catorze anos, eu não tinha a menor ideia de como voltar a ler de maneira independente. Mesmo dentro do universo dos audiolivros, deparei com algumas questões sobre a forma de passagem do texto impresso para a adaptação sonora. Talvez a mais constante delas tenha sido:  o que é melhor, uma leitura simples, mais neutra, ou dramatizada, com trilha e paisagem sonora? 

O primeiro audiolivro que realmente escutei foi Antígona. Era leitura obrigatória no primeiro ano do ensino médio. Não sabia como fazer para ler um texto dramatúrgico e não estava acostumada a ter que achar formas alternativas para chegar ao mesmo conteúdo que meus colegas. Foi quando me sugeriram dar uma chance aos audiolivros. Não achei em português, então comprei a versão em inglês, da Audible, empresa associada à Amazon, a maior produtora de livros falados do mundo. Era outro formato, outra língua e um vocabulário antigo que eu não conhecia.

O texto é lido por vários atores. Eles leem tudo o que está escrito, inclusive os nomes dos personagens que vão falar. Essas marcações, que servem para indicar diferentes vozes em um texto impresso ou lido por uma só pessoa, não fazem nenhum sentido quando as vozes dos personagens são de fato diferentes. Achei a interpretação excessiva e um pouco forçada. Mas, por outro lado, não me lembro de efeitos sonoros que indicassem movimento ou espaço. Tocava música de vez em quando, e a voz do coro se multiplicava. A Audible não se comprometeu nem com uma leitura mais simples da tragédia de Sófocles nem com uma verdadeira adaptação sonora da peça.

Ruído e mensagem 

Todos os livros falados de que não gostei ficaram em algum ponto entre esses dois estilos. A construção sonora não tem função narrativa clara, o ambiente criado é muito disperso. Parecem recursos acessórios que você tem que anular para ter contato direto com o texto. Nesses casos, o próprio formato é o ruído e a mensagem. Isso atrapalha muito.

Depois de um tempo sem poder ler sozinha, eu esperava que as tecnologias assistivas me proporcionassem a mesma experiência que a leitura visual, que eu considerava “a verdadeira”. Nesse primeiro contato com os audiolivros, eu me senti sem controle: tinha que aceitar o tempo e o ritmo de outras pessoas, como se fosse uma segunda leitura, para ter acesso a algo fechado para mim. Hoje, sei como pausar, voltar alguns segundos, mudar de capítulo, mudar a velocidade, mas nada disso me era familiar com um leitor de tela, software instalado no celular e no computador. Mesmo enquanto escutamos uma frase, as palavras ficam no passado. Para mim, a interpretação existia a partir da decodificação visual do que está escrito. Mas escutar também exige decodificação, também cria imagens mentais. Só que a velocidade e a lembrança da narrativa são diferentes daquelas a que estava acostumada.

Outra coisa que muda é a valoração simbólica que se atribui ao objeto do livro, como é descrito no conceito marxista de fetiche da mercadoria. A relação com o livro físico era também parte da minha leitura.

A maioria dos livros que leio é no formato padrão de e-book, com o leitor de tela. É sempre a mesma voz, quase como se fosse uma nova escrita. Mas alguns livros em áudio me encantaram, por oferecer recursos que vão além dos que existem nos formatos convencionais, físico ou digital. 

Estou escutando agora Só garotos, da Audible, lido pela própria Patti Smith. Tem uma parte em que ela vai com Gregory Corso para um coletivo de poetas. Enquanto ele grita reclamando das leituras — “merda, falta sangue, vá fazer uma transfusão” —, ela faz “uma anotação mental para nunca ser tediosa se um dia viesse a ler meus poemas”. Essa é uma promessa do livro que, ao longo de sua vida, ela cumpriu. É incrível escutá-la contando sua história, seu relacionamento com Robert Mapplethorpe, a cena artística da passagem dos anos 1960 para os 1970 e o desenvolvimento do seu trabalho. 

Eu havia tentado ler o livro digital no começo de 2020, mas não avancei muito. Frases cujo sentido eu não tinha entendido antes ganharam significado quando lidas por ela. Tanto a leitura de Patti quanto a sua forma de escrever são muito verdadeiras, e o audiobook parece uma sobreposição de dois textos, um palimpsesto sonoro em que ela, lendo, entra em contato consigo mesma, quando escreveu sobre sua vida. Para mim, é o melhor exemplo de uma leitura simples e potente: só sua voz durante as nove horas e cinquenta minutos de duração. É mais do que suficiente.

Outra adaptação da produtora da Amazon em parceria com a DC é The Sandman, de Neil Gaiman. Achei que transformar uma HQ para o áudio era uma proposta muito estranha. Principalmente essa, que tem desenhos complexos, cheios de referências visuais muito doidas, feitos por mais de vinte artistas. Mas foi um dos livros de que mais gostei nos últimos tempos. A estrutura ficou parecida com a de um podcast de ficção. Os três primeiros arcos da história são divididos em vinte episódios (assim como as edições físicas), quase todos com cerca de trinta minutos. Os volumes adaptados são “Perpétuos e noturnos”, a história de captura e fuga do Sonho e sua busca para recuperar seus objetos de poder; “A casa de bonecas”, que narra o surgimento de um vórtice que ameaça os domínios de Morfeu; e “Terra dos sonhos”, que conta as tramas de um escritor que mantém presa e estupra a musa Calíope em um sonho revolucionário, de mil gatos e da primeira produção de Sonho de uma noite de verão, com as fadas na plateia e os homens no palco. 

O elenco está incrível, especialmente James McAvoy, que interpreta o próprio Sandman. Não tive nenhuma dificuldade para diferenciar as vozes dos personagens. Os efeitos, a ambientação sonora, a trilha e o narrador, que é o próprio Neil Gaiman, cumprem a função das imagens no original. Eles constroem um universo maravilhoso e caótico. Tudo o que está escrito na HQ aparece no áudio. A produção adicionou alguns trechos e fez uma introdução, lida pelo escritor, na qual ele diz que o protagonista deve aprender a mudar, ou morrer. 

Cada episódio se inicia com uma cena de alguns minutos, e a abertura, que tem música, o título do episódio e o som da poeira do Sonho. Li algumas críticas sobre a permanência de trechos do original, como o do estupro de Calíope, que é perturbador de ouvir e não tem aviso, pelo menos sonoro, de gatilho. Também foi questionado o uso dos pronomes masculino e feminino ao mesmo tempo para Desejo, que poderia ser substituído hoje por um pronome não binário, de maior importância política. 

Transcriação

O audiolivro é, ainda assim, um experimento sensacional, e eu não poderia ter lido de outro jeito. Não é igual ao original, mas igualmente chega ao mesmo lugar indeterminado da história sobre histórias. É um ótimo exemplo do segundo estilo dos livros falados, que explora todas as possibilidades do áudio, e também de uma efetiva transcriação entre formatos. Em uma passagem de “Preliminares a uma teoria da literatura”, citada por Haroldo de Campos no ensaio “Da tradução como criação e como crítica”, Albrecht Fabri diz que a tradução “nasce da deficiência da sentença”. A limitação de uma língua, um formato ou um canal sensorial é o espaço de “empresa recreadora”, como diz o concretista.

Inclusive, a gravação de “Isto não é um livro de viagem”, lido por Haroldo de Campos, é um dos melhores audiolivros em português, na minha opinião. A leitura dele é ótima. Não consigo ler poema com leitor de tela; o sintetizador de voz muda muito esse tipo de texto. Sei que deve ser muito diferente do livro impresso, mas ter poemas, e livros em geral, lidos pelos próprios autores é muito especial. Nesse caso, o áudio aparece como meio e tema, “essa torção de significados num instante, esse deslizamento de superfície fônica”.

A produção desses livros em português é ainda muito insuficiente. Não é um formato de que eu e a maioria dos cegos tenhamos escolhido depender. Mas cresce cada vez mais o número de pessoas, também fora do grupo dos deficientes, que vêm se afeiçoando aos audiolivros porque se encaixam em sua rotina. As boas produções, com a leitura dos autores ou de atores famosos, atraem muitos novos ouvintes e reconquistam os velhos. É o caso, por exemplo, dos livros Sobre o autoritarismo brasileiro (Lilia Schwarcz), Quem tem medo do feminismo negro? (Djamila Ribeiro), O sol na cabeça (Geovani Martins) e Na minha pele (Lázaro Ramos), lançados pela Áudio Companhia, selo da Companhia das Letras criado em 2018, e lidos por seus autores.

Os audiolivros contêm um movimento em duas direções do tempo, a veiculação digital da oralidade. A gravação de pequenos poemas lidos em voz alta acontece desde a invenção do fonógrafo, em 1877, mas os discos não comportavam gravações longas. Foi só no início da década de 1930 que eles passaram a ter ranhuras mais próximas, permitindo faixas de vinte minutos de cada lado. Esse avanço tecnológico iria revolucionar a indústria da música e possibilitar o surgimento de outra, bem mais modesta. 

Em 1932, a American Association for the Blind e a Biblioteca do Congresso americano iniciaram um projeto de gravação de livros direcionado aos veteranos que perderam a visão durante a Primeira Guerra Mundial e também a outros adultos que ficaram cegos e não tinham sido alfabetizados em Braille. Os primeiros testes incluíram clássicos como  “O corvo” de Edgar Allan Poe. Só posso imaginar como deve ter sido escutar, naquela época, uma voz sem tempo e sem espaço, repetindo “nunca mais”. A gravadora Caedmon, considerada pioneira na indústria de audiolivros, foi criada em 1952 e lançou um disco com Dylan Thomas lendo seus poemas.

Acho que é possível traçar um paralelo com o ensaio “Prótese, mon amour”, de Paul B. Preciado. Ele escreve sobre a construção da identidade da mulher lésbica a partir da incorporação de símbolos da masculinidade e de próteses. Estas surgiram industrialmente no pós-Guerra, para servir aos soldados que tiveram membros amputados. Na verdade, “todos estamos à espera da transprodução protésica de nossos corpos. Qualquer um pode se tornar deficiente a qualquer momento. Todos dependemos de tecnologias próteses, criação de significado fora do corpo”. O trânsito funcional aberto a mudanças “constitui uma lacuna de intensidade produtiva”.

Quem escreveu esse texto

Maria Stockler Carvalhosa

É escritora e curadora da editora de audiolivros Supersônica.

Matéria publicada na edição impressa #43 em fevereiro de 2021.