Crônica da pandemia, Literatura,

J. D. Salinger e eu

Eu não tinha a menor ideia do que aquele pintinho morto estava fazendo lá no final daquele conto do Salinger

20maio2021 | Edição #45

Ao longo de um curso on-line sobre o livro Nove histórias (Todavia), de J. D. Salinger, ministrado pelo tradutor Caetano W. Galindo, a professora e escritora Luana Chnaiderman redigiu, em março de 2021, um diário de leitura acompanhando as análises feitas sobre as histórias criadas pelo autor norte-americano. Nessas passagens, ela aborda desde os reality shows que maratonou durante a pandemia até a perplexidade diante do pintinho morto em “Pouco antes da guerra com os esquimós”.

Vi todos os reality shows. Sei como a casa da Lego foi concebida, planejada e construída. Chorei vendo competições de moda, nas quais a realidade urbana encontrou a fantasia numa rodada de street wear e a atitude foi tudo quando se trabalhou com couro e peças sintéticas. Acompanhei A Batalha das Flores, onde foram criados enormes tronos de reis e rainhas mitológicos a partir de frutas, legumes e verduras; vestidos de gala foram bordados com flores e caules e monstros da natureza nasceram de plantas que brotam do chão. Acompanhei vidraceiros soprarem peças que expressavam a maneira como se enxergam e moldarem, a partir do fino pós de areia colorida, besouros, icebergs e cogumelos. As temperaturas são altas demais, os vidros quebram a toda hora e uma das participantes estava ficando cega. Sei tudo sobre a cotação e o sistema de compra e venda de casas milionárias em Beverly Hills, Los Angeles.

Desde a semana passada, o Galindo me acompanha. Lavamos banheiro, arrumamos a cama, andamos pela casa e assamos um frango juntos. Levo-o pra lá e pra cá enquanto percorro o dia. Hoje estamos na aula três. Cada aula tem três horas e meia. Estamos há uma semana, ou sete horas, juntos.

Ele, sempre no mesmo lugar. Eu, vou e venho. Um dia, ele resolveu olhar para a luz verde da câmera. Fica melhor? Cheguei perto para ver. Parece que eu estou olhando para vocês? Na verdade fica meio estranho, você olha para um ponto fixo e deixa de se mexer um pouco, Galindo. Mas eu não consigo avisá-lo. 

A cada aula, um conto. Podemos ver a cara, o pescoço e metade do tronco dele. Está sentado, atrás de uma mesa, veste camisa. É cem anos mais novo do que eu imaginava. Tem uma estante atrás. Não consigo ler nenhuma das lombadas. Estamos lendo os contos do Nove histórias, do Salinger. Tradução dele mesmo, do Galindo, que traduziu a obra toda para a Todavia e se controla para não ficar mortificado a cada escolha difícil que teve que fazer. Espero que vocês estejam lendo em inglês, ele disse uma vez. Cada aula, um conto. Do começo ao fim. Linha a linha. YouTube. A universidade disponibilizou. Curso de pós. Foi interrompido no começo do ano e eles voltaram em outubro, 2020. Balbúrdia. Fase vermelha. Voltei ao ir e vir entre paredes.

***

Três dias atrás, após a primeira aula, eu escrevi assim:

Então de bobeira acordei chorando depois de mais uma noite sem dormir sem conseguir descansar o corpo não ajeita a cabeça não ajeita nada se ajeita onde está o pique a melhor versão de si o cultivo das pequenas coisas a alegria interior foi pras cucuias, pelo menos por enquanto, vai voltar, talvez não volte, sei lá, eu sei, às vezes uma aula, uma conversa, um carinho de amor, o encontro com o Alê, mas olha, uma bomba, uma revolução que a gente precisava, mas não é isso que eu queria contar. O que eu queria contar mesmo é que ontem dei o play no Caetano W. Galindo. Ele, junto à universidade, disponibilizou o curso de pós graduação sobre Salinger inteirinho no YouTube. Mas então, pois bem, a gente acorda e vai cumprindo os afazeres, a disciplina das horas, mesmo sem alegria, arrumar a casa, limpar a casa, quem tem força, mas então: dei o play no Galindo e lá estava a aula, de três horas e meia, tudo isso, era assim, na faculdade, na letras nem sempre, mas na história e na filosofia, a gente sentava e ficava a tarde inteira ouvindo e anotando.

Começar do começo, e tanta coisa interessante, imagina, a vida, a obra, vamos misturar, não vamos misturar, levei a caixa de som para o banheiro, vamos limpar o banheiro. A vida do Salinger, a filha do O’Neil e os escritores babões e o Chaplin, olha só. E a edição, o trabalho de tradução, a diferença entre aspas e travessão, o trabalho de preparação, tudo o que foi discutido, o pessoal da editora e as regras para se publicar o Salinger.

Vassoura pelo quarto e estávamos na Segunda Guerra Mundial, a invasão da Normandia, o Holden tinha o cabelo raspado, sete de dez pessoas morreram, eu paro e penso e hoje? quantas? mas a guerra e a volta para o Estados Unidos. E a filosofia oriental. Duka, sofrimento, que etimologicamente tem a ver com uma roda quebrada. A roda que não encaixa no eixo.

E o Salinger e as Nove histórias, o curso inteiro será sobre Nove histórias, meu deus, meu livro de contos de todos os tempos, que bom, e o Galindo ali, dando aula sem ver ninguém, uma conversa no chat, eu sei professor, é horrível, a gente faz piada e não vê as caras de incredulidade, mas vamos seguir, para que as aulas possam acontecer, que sejam públicas e o livro, a organização do livro e o primeiro conto, “Um dia perfeito para peixe banana”, meu conto de todos os tempos, e como traduz o intraduzível, e já estava na cozinha, a sala varrida, as plantas aguadas, a arte do diálogo, é verdade, Galindo, que incrível esse diálogo em que ela conversa com a mãe pelo telefone, no quarto de hotel.

A louça lavada, vamos lá, pepino, salada, frango e estávamos na segunda parte do conto, a conversa no mar, os peixes bananas, vi um, conta a menina, vi um peixe com seis bananas na boca e o Seymour morre de ternura, nunca achei o Seymour psicopata, vontade de ir pro bar conversar, o Galindo é engraçado, ele fala gírias e faz piadas boas, almocei e depois as aulas.

A casa estava limpa.

Hoje tem louça de novo.

Hoje estou na aula três, que trata, é claro, do terceiro conto: “Logo antes da guerra com os esquimós”. Eu nunca entendi esse título. Não tem guerra com os esquimós. Quem entrará em guerra com os esquimós? Que tipo de pessoa entra em guerra com os esquimós?

Estamos assim, também, no Brasil: logo antes da guerra com os esquimós. Talvez, inclusive, a guerra já tenha chegado.

O meu avô traduziu os contos do Tchekhov. Uma vez li esses contos com a turma do terceiro colegial e chamei meu avô para vir conversar com a classe. Ele veio a pé, andava sempre pelo bairro e a escola fica na mesma rua em que era a casa dele, eu acompanhei meu avô pelo caminho, fomos cumprimentando todos, é um prazer, professor. Um dos meus espantos desde pequena é que todo mundo na cidade chamava meu avô de professor.

Boina, óculos e uma animação que nunca o largava. Falou e, ao final, os alunos fizeram perguntas. E um aluno perguntou. Sobre o segundo conto do livro “A dama e o cachorrinho”. Também um diálogo, Galindo, a gente leu e releu junto em sala de aula, cada um fazendo uma voz. O patrão vai pagar o salário da moça e começa a descontar o pires quebrado, o dia faltado, a roupa manchada e no final já não há nada, a moça praticamente mais deve que recebe, e ela fala merci. O patrão fica furioso, dá uma bronca, diz que estava ensinando uma lição, que ela deveria reclamar, olha aqui o salário inteiro, “como pode ser moleirona assim? Por que não protesta? Por que fica quieta? Pensa que, nesse mundo, pode-se não ser audacioso? Pensa que se pode ser tão pamonha?”

O título do conto é, na tradução do vovô, “Pamonha”.

Então o menino levanta a mão:

– Eu queria saber por que o conto chama Pamonha.

Meu avô olhou para ele e sorriu. O moço, ali lá do fundo, completa:

– Tem pamonha na Rússia?

E todo mundo riu, ficou meio sem jeito, eu olhei pro meu vô, esses moleques, e meu avô respondeu:

– Não, não tem pamonha na Rússia. Pensando agora na sua pergunta, você tem razão. Não foi uma boa tradução. Eu vou mudar.

Meu avô relata esse caso no livro Tradução, ato desmedido (Perspectiva, 2011). Um belo título. Difícil, a arte dos títulos. Meu avô gostava da tradução Quanto mais quente melhor para o filme Some Like It Hot, do Billy Wilder. E eu gosto de Irmãos à obra. Um desses programas que eu assisto. São dois irmãos gêmeos, empreiteiros, que te dão a casa dos sonhos. Eles usam camisa xadrez, calça jeans, botas e cintos com tachinhas e cheios de ferramentas. Irmãos à obra. A competição dos vidraceiros chama, em português, Vidrados. Reforme na baixa, venda na alta. Sim, A Batalha das Flores. Puta título. 

Estou na cozinha, café da manhã. Logo antes da guerra dos esquimós. O Salinger é genial ao dar títulos, diz o Galindo. 

Difícil a arte das flores, quero dizer, dos títulos. Um dos livros do Salinger chama “Pra cima com a viga, moçada”.

Jura?

***

O segundo conto, lemos ontem, é o “Uncle Wiggily in Connecticut” (Uncle Wiggily Longears é o personagem principal de uma série de histórias infantis norte americanas,. Um coelho que usa uma bengala. Aqui, ninguém entenderia a referência, explicou o Galindo. Ficou Tio Tornozelo em Connecticut. Pelo contrato de edição das obras do Salinger, não se pode colocar nenhuma nota de rodapé em nenhum lugar dos textos. Também o nome do autor tem que ser menor que o título. E não pode haver ilustrações nem figuras nas capas. nem posfácio, nem prefácio.)

Já é meio dia e daqui a pouco eu dou aula, e agora estamos no terceiro conto. depois desse vem “O gargalhada”. Outro sofrimento de tradução. Em inglês, The laughing man. E tem um romance do Victor Hugo ao qual o conto alude que chama O homem que ri. O homem que ri talvez ficasse melhor, é verdade, Galindo, concordo, mas olha, já foi e “O gargalhada” as crianças gostam mais, e lembra o Coringa, que é o herói de todos eles. E sobre o Tio Tornozelo, fiquei pensando, mas ia colocar o quê? Tio Saci? O Galindo ainda não entrou na história propriamente dita, do conto.

Duas da tarde e o Sexto B me espera. Google sala de aula. Estou sempre no mesmo lugar. Atrás de mim, uma parede azul. 

****

Na aula, as crianças tiveram que dar uma volta pela casa, pegar três objetos e construir uma personagem a partir desses três objetos. A personagem tem que ser uma ladra ou ladrão tipo Arséne Lupin, ou seja, um ladrão de casaca, um gentleman. Eu peguei uma bola de tênis, um hipopótamo indiano de pelúcia e uma caneta uni-pin preta, ponta 0,8. O meu ladrão é jogador de tênis profissional, nível internacional, que participa de todos os campeonatos ao redor do mundo. Escreve os planos de seus roubos em um caderno secreto, sempre usando essa caneta preta. E o hipopótamo foi um presente da mãe, antes dela ir para a Índia em um retiro do qual nunca voltou. No sexto ano, falamos sobre códigos secretos, língua do pê e o mistério da casa abandonada.

Oito da noite. Salada e torta. YouTube. Forno ligado. Play. “Logo antes da guerra com os esquimós”. 

***

“Fazia cinco sábados seguidos que Ginnie Mannox jogava tênis de manhã nas quadras do East Side com Selena Graff, sua colega de classe na turma da srta. Basehoar.”

Basta uma frase. Já estamos no meio de Nova York e sabemos da existência dessas duas meninas que jogam tênis. Amigas não, colegas. “Ginnie abertamente considerava Selena o maior entojo da turma da srta. Basehoar – numa escola descaradamente cheia de entojos de dimensões significativas – mas ao mesmo tempo nunca tinha conhecido ninguém igual a Selena para providenciar latas novas de bolas de tênis.” Aha! Ginnie, sua interesseira. Torta de palmito com salada de folhas. Eu tempero bem a salada e como em uma cumbuca de madeira. À torta, falta sal. 

“Mas aquele negócio de deixar a Selena em casa depois de jogar tênis e aí ter que pagar sozinha a corrida inteira – todo santo sábado – estava dando nos nervos de Ginnie. Afinal de contas, pegar táxi para voltar das quadras tinha sido ideia da Selena. No quinto sábado, no entanto, quando o táxi começou a subir rumo norte na avenida York, Ginnie de repente se manifestou.”

É verdade. Dá uma raiva de gente folgada que, por exemplo, não se oferece para dividir com você a corrida do táxi. Eu lembro desse conto. Li esse livro inteiro ao longo da vida e talvez tenha sido uma das primeiras e únicas vezes que li um livro inteiro e somente em inglês. Tem muita criança no livro. E morte. Ele junta Segunda Guerra e criança e um banho de praia ou duas amigas bêbadas conversando. E é de uma ternura que machuca e às vezes se torna mesmo impossível até de aguentar.

E essa menininha, não bem menininha, resolve cobrar da amiga. Ela tem quinze anos, e as duas sobem o elevador sem se falar, uma olhando pro teto outra para o mostrador, o Galindo lê, comenta, e eu entro junto no apê da rica da Selena. A Ginnie espera, sentada no sofá da sala, enquanto a Selena entra pra falar com a mãe, pedir dinheiro para a mãe, nunca pensei que você fosse tão mesquinha, diz pra Ginnie, que cruza as pernas e finge ler a Vogue que estava ali ao lado. Quando a amiga sai, Ginnie olha ao redor e vai redecorando mentalmente todos os cantos da sala. Faço isso também. Com minha casa. E a de todo mundo. Uma praga. No Irmãos à obra todos querem uma open concept kitchen e espaço para entertain.

É essa a história, as personagens, o conflito. Ou é isso o que se mostra. Tem o iceberg inteiro no fundo. Eu acho. Ginnie resolve cobrar. Não pode esperar até segunda feira? Não, não pode. Todo mundo sabe que se ela topar esperar até segunda não vai receber nenhum dinheiro nunca, diz o Galindo.

Enquanto redecora a sala tirando quadros e vasos e móveis, aparece o irmão mais velho da Selena. O dedo dele tá sangrando, vai praticamente cair, ele mostra para a Ginnie os dois conversam um bocado. Ele conhece a irmã da Ginnie, a maior das esnobes, ele estava construindo uns aviões e escreveu oito cartas para a irmã da Ginnie que nunca respondeu nenhuma. De qualquer jeito, o moço fica falando que o dedo dele vai cair ou coisa que o valha e a Ginnie não somente o escuta, mas também o aconselha e acha legal ouvir o que ele fala da irmã, dá pra notar. O moço olha pela janela e fala “olha lá aquele pessoal”, “uns idiotas do cacete”. “Todo mundo indo pra droga da comissão de alistamento. Agora, a gente vai entrar em guerra com os esquimós. Sabia dessa?.” Que guerra dos esquimós? A droga da guerra com os esquimós. Todos terão que se alistar. Os velhinhos de sessenta anos serão os primeiros a ser convocados.

“O irmão da Selena olhou longamente para o seu ferimento pela última vez como que para verificar se o dedo tinha condições de encarar o trajeto de volta até o quarto” Bom, se cuide. Ele sai da sala. O Amigo dele vai chegar e ele tem que fazer a barba. Em poucos segundo o cara volta, com a metade de um sanduíche na mão. 

“Coma isso aqui, tá gostoso, comprei ontem de noite numa droga de uma delicatessen.” A Ginnie explica que a mãe deixa a comida dela pronta, que ela prefere esperar, que não, mas ele insiste e ela morde um pedacinho, agradece. Ele volta pro quarto, ela põe o sanduíche no bolso do casaco.

Continua no sofá.

O tal do amigo chega e também desanda a conversar com a Ginnie, conta a história do companheiro de apartamento, o cara simplesmente desapareceu e levou tudo o que podia embora com ele, tudo. Cadê o Frankie? os dois vão ver A bela e a fera, do Cocteau.

Selena entra no cômodo. Sinto muito ter te feito esperar. “Eu nem quero o dinheiro mesmo”, disse Ginnie. “me leva até a porta”. E diz mais: “escuta, você vai fazer alguma coisa especial hoje à noite? Quem sabe eu posso dar uma passada aqui. Eu conheci o seu irmão. E ele faz o quê mesmo?”

O Galindo lê linha por linha e estamos no final. Já jantei, escovei os dentes, indo para a cama. O conto termina na calçada, a menina indo em direção a uma lixeira, para jogar o sanduíche ali. Mas não joga. Guarda no bolso.

***

O conto podia terminar aí, diz o Galindo.

Mas não termina.

A frase seguinte conta de um pintinho que morreu e a Ginnie levou três dias para jogar fora.

Já é meia-noite. Nem sei como as horas passaram. Amanhã acordo cedo. Mas quero saber. Explica, Galindo. 

Qual a relação do pintinho com o resto do conto? Por que ele está aí?, pergunta o professor.

Sim, queremos saber.

E por que a Ginnie não quis mais o dinheiro? 

E é sobre o quê, essa história?

***

Eu acho que ela pegou um crush pelo irmão da amiga e quer voltar lá pra jantar e vê-lo mais um pouco. Quero falar, mas não há como me escutarem. O Galindo falou epifania? Olho para a tela. Ele ainda está lá, a mesma posição, não mudou de roupa, nada, deve ser meio dia, lá na terra deles.

Ginnie podia não ter mudado de ideia. Ter cobrado da amiga até o fim, descido, jogado o sanduíche fora, e separado a grana para a sessão de cinema. Mas nada disso. Não cobrou, deixou a droga do sanduíche no bolso e nem ao cinema quer ir mais. E a história do pintinho. 

***

Pintinhos dourados eram dados de presente em festinhas de aniversário. Quando eu era criança meu tio me deu um passarinho em uma gaiola. O pássaro ficou doente dos olhos, era uma doença horrível e morreu, talvez tenha sido culpa minha, negligência, até hoje não sei e dói quando lembro. Não que eu tivesse me afeiçoado ao pássaro. Mas eu lembro dos olhos machucados dele.

Pintinho.

Frango.

Bolso.

Forro do fundo do cesto de papel.

Ok. Mas então?

Eu queria muito saber.

***

Está acabando a aula, ele diz. Já passa da meia-noite.

“Carolina”, chama o professor. (não escutamos a Carolina, ela responde pelo chat, qual será a cara da Carolina?). “Você está encarregada de duas coisas. Uma: me lembrar de falar sobre o que a incompreensibilidade tem a ver (ou não) com a sinceridade. Outra, me lembrar de perguntar para a turma sobre qual é a desse pintinho no final desse conto. Por que ele está aí? Aguardo ansiosamente as vossas interpretações e hipóteses que serão discutidas semana que vem.

Passar bem, boa semana.”

Lembrei também da Clarice e ela tem pintinhos, inclusive acho que o mesmo pintinho da capa do Para gostar de ler aparece na capa da edição que tenho do A legião estrangeira, ao lado de uma boneca velha e um ovo quebrado. Nunca entendi aquela capa sinistra. Nem muitos dos contos da Clarice. Por exemplo, aquele do ovo. Vai saber. 

Eu não tinha a menor ideia do que aquele pintinho morto estava fazendo lá no final daquele conto do Salinger.

***

Precisava saber. O Galindo ia me explicar. Ou a Carolina. Alguém da turma. E eu nem precisava esperar uma semana.

Bastava apertar o play. A aula seguinte, sobre “O gargalhada”, tem três horas e meia. Já estava debaixo das cobertas.

Play.

***

Ele no mesmo lugar. Muda só a camisa. Arruma alguma coisa, olha pra tela e diz pronto, I’m alive. Não, ele diz “I am live”, as aulas são ao vivo, lá na terra dele, Curitiba.

Então, mocinho, o livro tem nove contos, atravessamos os três primeiros e vamos falar da estrutura o livro, bla bla bla.

Comecei a ficar nervosa. O Galindo falava e parecia não lembrar nem ligar nem nada para o pintinho morto. Nada do sanduíche nem da droga da mudança de ideia da menina. Começou já no “Gargalhada”.

Suei frio.

Como assim?

Cadê a Carolina?

Nada da Carolina.

Era bem tarde já. Tinha que dormir. Será que a Carolina faltou?

Alguém? Alguém da classe?

Não adiantava chamar. Ir ao chat. Eles estão no passado. Não sabem que estou aqui.

Até sento, na cama. A Pipa, minha cachorrinha, assusta e vai dormir em outro canto.

Como vocês esqueceram?

Alguém, alguém da classe vai se manifestar. Contar que ficou a semana inteira pensando e que acha que a figura do bicho morto e guardado ali no final do conto significa… o que ela tá guardando, quando guarda essas coisas? 

Não me ouviram, não podiam ouvir, estavam seis meses atrás.

Sete dias. E ninguém mais lembrava de como a última aula tinha terminado.

Eu era a única.

E não podia dormir.

Eis que o Galindo olha para o chat e tem um recado.

Sim!

Uma mensagem. Da Carolina! Fico alegre, escuto atenta. Ele lê em voz alta. “tu tinha me pedido para te lembrar…” escreve a Carolina. Até corro para perto da tela. 

“… tu tinha me pedido para te lembrar a pergunta: o que a incompreensibilidade tem a ver (ou não) com a sinceridade. Porém eu não lembro o contexto. Hahahahahaha.”

***

Olhei incrédula para a minha frente e perguntei pra samambaia:

Como assim?

Carolina!!!

E o pintinho morto? E o final da droga do conto?

E o Galindo comentou o comentário: “olha, Carolina, que bom que você me lembrou da pergunta que eu havia pedido para você me lembrar, mas você não lembra o contexto e eu não lembro porque eu te pedi para me lembrar disso.”

****

Meia-noite, 23 de março.

“3.158 mortos.”

Quem fará a chamada, quem dará pela falta de cada nome?

“Atriz de ‘Bridgerton’ está namorando ator de ‘Esquadrão Suicida’.”

“Viúva negra é adiado e chega ao Brasil com custo extra”

“Relatório acusa Facebook de permitir desinformação durante eleição nos EUA”

“Aumentou o trânsito em São Paulo.”

“Decisão do STF encerra ciclo da Lava Jato e valida discurso de Lula.”

“Comprei uma esteira e também compraria o carro do Moro, diz delegado após crítica de Gilmar.”

***

Inacreditável.

Se pudesse voltar no tempo, lembraria a Carolina de anotar direito as coisas no caderno.

“Mas, como eu sou obsessivo” continua o Galindo, “vou responder a pergunta, sem saber direito porque mas com a certeza de que chegarei no lugar onde chegaria de qualquer maneira porque pessoas obsessivas como eu não primam pela variedade.”

Será que ele vai lembrar do pintinho?

***

“Na frente do prédio, ela foi andando rumo oeste para a avenida Lexington para pegar o ônibus. Entre a Terceira e a Lexington, ela pôs a mão no bolso do casaco e encontrou a metade do sanduíche. Tirou dali e começou a baixar o braço para largar o sanduíche na rua, mas acabou colocando de volta no bolso. Uns anos antes, ela levou três dias para jogar fora o pintinho que ganhou na Páscoa e encontrou morto na serragem que forrava o fundo de seu cesto de papel.”

***

O Galindo continua falando. Sobre a pergunta que a menina lembrou de lembrar. 

Como dizer quando não há como dizer aquilo que eu quero te dizer? Ele pergunta.

Não sei.

***

A epígrafe do livro Nove histórias é um Koan zen.

Conhecemos o som de duas mãos que aplaudem

Mas qual é o som de uma mão que aplaude? 

Por que o pintinho ficou morto três dias na caixa?

Por que a história acaba assim?

***

Meia-noite e meia.

Acabou a resposta para a Carolina. Pauso.

***

Não sei o porquê do pintinho.

Nem por que a Ginnie mudou de ideia. Nem sobre o que, afinal de contas, é o conto.

Então, de repente, senti muito sono.

“Se um sujeito está com muito sono mesmo, Esmé, ele sempre tem alguma chance de voltar a ser um homem com todas as suas fac – com todas as suas f a c u l d a d e s intactas”.

“Para Esmé, com amor e sordidez”. Outro título. O quinto conto. Meu avô lutou na Segunda Guerra Mundial. Contava de um castelo onde ficou e havia livros. Aos noventa anos, ele não conseguia dormir de pesadelos que tinha com a guerra.

***

A próxima aula é sobre o “Gargalhada”. Deixei a louça para amanhã. Talvez, quem sabe, seja possível dormir um pouco, logo antes da guerra com os esquimós.

Quem escreveu esse texto

Luana Chnaiderman de Almeida

Escritora e professora, é autora de Os animais domésticos e outras receitas (Perspectiva).

Matéria publicada na edição impressa #45 em abril de 2021.