Literatura,

Fogo onça

Uma viagem ao Pantanal nos anos 1940 inspirou Guimarães Rosa a escrever um de seus contos mais célebres

14out2020

“Agora o fogo estava p’r’o meu ombro. Nós íamos beiradeando aquele paredão desumano, vermelho e amarelo, e enfumaçado, que corria também, querendo vir mais do que a gente: como que nem com uma porção de pernas, esticando uma porção de braços. O bafejo do calor era tão danisco, que eu às vezes passava mão p’lo meu corpo, pensando que já estava também pegando fogo.”

“Foi outra corrida friçosa, o caminho era um beco apertado, fogo de cá, fogo de lá. Um fogo onça, alto e barbado, que até se via o capim ainda são dobrar o corpo p’ra fugir dele… Senti o cheiro de carne queimada. Minha cara não aguentava mais aquele calor, que agravava. Fumaça entrando, a gente chorando. Não tinha mais cuspe no engolir, minha boca ascava virada do avesso. Voava pedaço de fogo, caindo em boi, e fazendo eles berrarem pior, sofrente.” 

É com essas imagens que o vaqueiro Mariano descreve uma queimada no Pantanal, em conversa com João Guimarães Rosa. O escritor, que esteve na região de Corumbá, Aquidauana e Ponta Porã em 1947, escutava atento e anotava tudo na sua famosa caderneta. Dessa viagem resultou o texto “Com o vaqueiro Mariano”, publicado em três partes no Correio da Manhã (outubro de 1947, janeiro e março de 1948), depois num pequeno volume  de mesmo título (1952) e, por fim, no póstumo Estas estórias (1969). A conversa com Mariano deixaria fortes impressões no espírito do autor e viria a inspirar a situação dialógica presente em textos fundamentais, como Grande sertão: veredas, em que um homem vindo “da cidade” conversa com alguém de uma região remota, atuando como ouvinte e não como falante. A voz é concedida ao vaqueiro, ao jagunço, ao sertanejo.

Em uma das falas de Mariano, é notável a expressão “fogo onça”, usada para se referir ao avanço implacável das labaredas que acuavam o gado e os vaqueiros desesperados. Hoje o Pantanal mais uma vez se encontra em chamas — no entanto, em proporções sem precedentes. Já a metáfora capaz de traduzir a causa dos incêndios poderia ser “fogo-pasto” ou “fogo-agronegócio”. Enquanto isso, o maior felino das Américas, a onça-pintada, tem sido vítima desses incêndios, que já devastaram 25% do bioma, afetando terras indígenas e áreas de preservação, a exemplo do Parque Estadual Encontro das Águas (mt). Este, que abriga a maior concentração de onças-pintadas por quilômetro quadrado do mundo, já teve 85% de sua área atingida. 

Iauaretê

Não há como não evocar outro texto de Guimarães Rosa, no qual o autor imortalizou não só o jaguar, mas também uma “língua de onça”. Trata-se de “Meu tio o Iauaretê”, uma das mais admiráveis e radicais realizações da inventividade rosiana. A propósito, a preservação da relação entre indígena e natureza vem nesse texto sugerida já na opção pelo termo tupi “jaguar”, que vem de ya’wara (fera) — ya’wara+etê (fera de verdade) —, em detrimento de “onça”, oriundo do latim. A história do onceiro que se transforma em onça teria sido escrita em 1949, portanto, ainda sob o impacto da viagem ao Pantanal. Mas esse texto manteve-se inédito até aparecer na revista Senhor, em 25 de março de 1961. A revista-símbolo de um Brasil moderno e urbano trazia, então, em suas páginas um Brasil indígena e animal. No contexto de sua publicação, o contraste soa como deslocamento crítico e até de denúncia. Postumamente, o conto integraria Estas estórias, na companhia do “Entremeio: com o vaqueiro Mariano”.  

Em “Meu tio o Iauaretê”, a história se conta por meio da fala do onceiro Tonho Beró, ou Tonho Tigreiro, que recebe um hóspede adoentado em seu rancho, isolado no mato. De origem indígena por parte de mãe, Beró conta ao seu hóspede sobre o tempo em que fora caçador de onças. Capturava os felinos por dinheiro e matara mais de 150 onças, mas se arrependeu. Conviver com esses animais fez com que se desse conta de sua origem indígena e visse nas onças os seus “parentes”. Vale lembrar que, na cosmovisão indígena, o parentesco entre homem e animal não se dá pela animalidade do primeiro, e sim pela humanidade do segundo, como demonstrou o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. 

Rosa consubstancia uma língua de onça com a metamorfose do caçador em felino

O conto se desenvolve em torno de uma tensão crescente, pois à ambientação noturna e ao isolamento em que os personagens se encontram vêm somar-se as indicações de que o tigreiro se tornara matador de pessoas e, como seu parente, o jaguar, devorador de carne humana. Os ataques a humanos se dariam em momentos de metamorfose, como a que se vai fazendo no decorrer da história. Seu interlocutor leva a mão ao revólver, e Beró suplica-lhe que não atire. O conto termina com interjeições, onomatopeias e fragmentos de palavras em tupi, os últimos sons emitidos pelo onceiro-onça antes de ser morto a tiros. Rosa maneja a linguagem de modo a consubstanciar uma língua de onça com a metamorfose do onceiro em felino. Partindo de uma fala híbrida, permeada de termos em tupi, chega-se aos esturros ou urros de agonia da fera, supostamente interrompidos pela arma de fogo.  

O mestiço de pai branco (“homem burro”) e mãe indígena (“Mar’Iara Maria, bugra”), que redescobre sua natureza animal, identifica-se ainda com um elemento africano em seu momento de agonia quando atribui a si mesmo mais um nome, “Macuncôzo”, que é eliminado pelo branco.  Essa hipótese ganha força quando se atenta para o teor de súplica que o jaguanhenhém, “fala de onça”, deixa transparecer: 

“Desvira esse revólver! Mecê brinca não, vira o revólver pra outra banda… Mexo não, tou quieto, quieto… Ói, cê quer me matar, ui? Tira, tira o revólver pra lá! Mecê tá doente, mecê tá variando… Veio me prender? Ói: tou pondo mão no chão é por nada, não, é à-toa… Ói o frio. Mecê tá doido?! Atiê! Sai pra fora, rancho é meu, xô! Atimbora! Mecê me mata, camarada vem, manda prender mecê… Onça vem, Maria-Maria, come mecê… Onça meu parente… Ei, por causa do preto? Matei preto não, tava contando bobagem… Ói a onça! Ui, ui, mecê é bom, faz isso comigo não, me mata não… Eu — Macuncôzo… Faz isso não, faz não… Nhenhenhém… Heeé!… 

‘Hé… Aar-rrã… Aaãh… Cê me arrhoôu… Remuaci… Rêiucàanacê… Araaã… Uhm… Ui… Ui… Uh… uh… êeêê… êê… ê… ê…”

O artigo de Haroldo de Campos “A linguaguem do Iauaretê”, base para traduções e contribuições de outros intérpretes, defende essa hipótese, pois traduz o desfecho como: “Não me mate! sou seu amigo, meio irmão, quase parente”. De acordo com Campos, o nome Macuncôzo seria uma “nota africana”, dado revelado em carta pelo próprio Guimarães Rosa, numa possível referência ao arrependimento do tigreiro pelos negros que matou. Desse texto rosiano, por se constituir de uma narrativa que é pura oralidade numa situação-limite, pode-se dizer ainda que é antropofágico. Não só por apresentar o onceiro que se metamorfoseia em onça e devora carne humana, mas por colocar em cena a cultura indígena, por meio dos mais de cem vocábulos em tupi, do nome africano no momento de agonia e da paternidade — renegada — branca. 

Não por acaso, é um conto sobre o qual se debruçou Viveiros de Castro, que interpretou “Meu tio o Iauaretê” como uma alegoria da história da América: num continente marcado pela violência exploratória e aculturadora, a tendência era que desaparecesse o mestiço que reivindica suas origens indígenas, em detrimento da opção pelo branqueamento. 

Lido hoje, o conto soa alto como grito agônico do felino. Narra-se a transformação do onceiro em onça, fazendo-a surgir diante dos olhos apavorados de seu interlocutor, ao mesmo tempo em que uma língua de onça, amálgama de onomatopeias e termos em tupi, surge aos olhos do leitor. O jaguar aparece para desaparecer; ganha o centro e a voz da narração, portanto, o estatuto de sujeito do discurso, para então ser relegado à margem e ao silêncio no momento de sua eliminação, que é também o fim de sua fala e do texto. 

É possível que Rosa estivesse intuindo não os perigos que viriam a ameaçar o homem branco, vindo “de fora”, mas o que viria a ocorrer com o jaguar. Nhô Nhuão-Guede, o proprietário das terras onde vive Tonho Tigreiro, e quem o contratara para “desonçar o mundo”, aparece reeditado hoje de forma alarmante, institucionalmente ecocida, o que torna necessário ver e ouvir o jaguar: deixá-lo falar, como fez Guimarães Rosa.

Quem escreveu esse texto

Marise Hansen

Doutora em Literatura Brasileira e professora substituta de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo (USP).