Laut, Liberdade e Autoritarismo,

A informação é pública

Como funciona a Lei de Acesso à Informação em governos com resquícios autoritários

28abr2020

Em seu livro de memórias, A Journey: My Political Life, o ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair assume um grande arrependimento de seus tempos de governo: a aprovação da lei de acesso à informação (Freedom of Information Act, de 2000). Seria ela, em suas palavras, um de seus maiores erros.

Blair não é o único. Leis de acesso à informação mundo afora são consideradas subversivas, incomodam governantes da vez e causam verdadeiro tsunami nas dinâmicas governamentais. Mais: revelam resquícios e práticas autoritárias que ainda marcam governos contemporâneos.

A lei de acesso deu e dá trabalho. Governos historicamente acostumados à opacidade e à arbitrariedade quanto à decisão de oferecer justificativas públicas para aquilo que não lhes convém se viram desvelados. Na marra, tiveram que lidar com pedidos de explicação não usuais e com a revelação de decisões injustificáveis. Para a burocracia estatal, exposta em sua precariedade nos processos de gestão documental e justificação, exigiu severas adaptações em práticas e procedimentos. Ainda, demandou o desenvolvimento de uma inexistente estrutura apta a lidar com os pedidos de acesso recebidos.

Contudo, os ganhos quanto à transparência e controle que a lei traz são evidentes. Leis de acesso deram munição à imprensa – tradicionalmente a primeira a se valer de tal instrumento nos mais diferentes países –, à academia, aos agentes privados e a toda a sociedade. Ampliaram e garantiram lastro documental ao controle da ação estatal pela sociedade. Não à toa, inúmeros malfeitos foram detectados ou postos a público a partir de pedidos de acesso.

O caso brasileiro

A aprovação da lei de acesso no Brasil (LAI) enfrentou dificuldades similares às de outros países, somadas a elementos bastante particulares. O histórico ditatorial de fichar inimigos em escaninhos de porões repressivos gerou forte oposição de parte das Forças Armadas; a compreensão de que relações internacionais protegidas por procedimentos anacrônicos não se sujeitariam a escrutínio público esteve presente; a resiliente confusão entre público e privado mobilizou ex-presidentes pela proteção de seus períodos. Ainda assim, após longo período de tramitação, a lei foi finalmente sancionada em 2011 e entrou em vigor em 2012.

Sob a ótica constitucional, a LAI e seu decreto regulamentar concretizaram a previsão de que informações produzidas ou custodiadas pelo poder público são, como forte regra, públicas e acessíveis a todos. As poucas exceções são aquelas cujo sigilo seja de fato imprescindível à segurança da sociedade e do Estado – base para a classificação da informação por parte de poucos agentes públicos autorizados para tanto – e outras situações de acesso restrito constitucionalmente ou legalmente garantidas – sigilo profissional, sigilo bancário, proteção de intimidade, dados pessoais, segredo de justiça etc.

Em uma imagem, a nova legislação direcionou luz sobre uma enorme prateleira custodiada pelo Estado. Informações devidamente classificadas ou legalmente protegidas, bem como algumas situações em que a publicidade prévia efetivamente compromete a decisão governamental (documentos preliminares de um plano ainda não enviado ao Congresso, por exemplo), devem estar em gavetas fechadas. Todas as demais informações, por seu turno, estão nas prateleiras, prontas ao acesso por qualquer cidadão. Cabe ao poder público liberá-las de antemão (transparência ativa) ou entregá-las a partir de demandas da sociedade (transparência passiva). Sem senões.

A propósito, há detalhe usualmente despercebido. Ao não trazer a figura de “interesse” ou “interessado” em seu texto, o decreto regulamentar deixou claro que os motivos do pedido pouco importam. Ou se está na gaveta, ou se está nas prateleiras. Não há meio termo. A informação é pública.

Problemas

É aqui, no entanto, que aparecem problemas concretos. Embora recente estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV) aponte para a manutenção do padrão de transparência pelo atual governo federal – o que inequivocamente é boa notícia –, e que haja consistente trajetória de melhoria na implementação da lei, a prática da LAI merece olhar mais atento. No dia a dia, decisões estatais remontam a resquícios autoritários em todas as esferas federativas.

Em primeiro lugar, e ressalvado o bom trabalho da maioria dos servidores que compõem o sistema de transparência, ainda são frequentes negativas de acesso ancoradas na recorrente resposta de que o pedido “é genérico” ou “exige trabalho adicional” da Administração, sem justificativa consistente para tal. Levantamento da Agência Pública também mostra que negativas a pedidos de acesso sob a justificativa de que cidadãos e jornalistas “pescavam” informações para eventuais matérias (o chamado fishing expedition) quintuplicou no atual governo federal. Em menor escala, decisões de instâncias inferiores ainda questionam, mesmo que indiretamente, motivações ou interesses dos requerentes.

Quando a norma é voluntariamente instrumentalizada à restrição de acesso, põe-se em marcha estratégia protetiva dos ocupantes do poder, explícita quando em 2017 autoridade municipal de São Paulo afirmou que deveriam “botar pra dificultar” o acesso até que jornalistas desistissem das matérias. Em clara manutenção da confusão entre público e privado que marca nossa história, o poder público inverte a lógica legal e age como se os dados e informações fossem dele, não de todos. Cria-se margem discricionária onde não há. Em prol da redução da exposição ou da demanda gerada, fecha-se a prateleira.

Mas há algo ainda mais grave. Na linha do que apregoa a cruzada de Tony Blair, não são poucas as tentativas da alta administração de reduzir a aplicação da lei e proteger os seus – usualmente, e ironicamente, com decisões tomadas a portas fechadas, sem qualquer consulta à sociedade ou ao conselho de transparência.

Em quinze meses de novo governo federal, como bem catalogam os autores da FGV, os exemplos acumulam-se: decreto que permitia a delegação de competência para a classificação de informações como ultrassecretas e secretas, ampliando sobremaneira o rol de servidores que poderiam tomar tal decisão – sabiamente derrubado pelo Congresso Nacional; sigilo das informações a respeito de quem visita o palácio do planalto; ausência de explicações relativas a reuniões com empresas do setor de armas por parte do Ministro da Justiça ao longo das confusas alterações legislativas quanto ao controle e ao uso de tais produtos; decretação de sigilo sobre pareceres técnicos relativos à reforma da previdência, mesmo depois de enviada ao Congresso.

Recentemente, as medidas legislativas excepcionais que emolduram o combate ao coronavírus colocaram a LAI novamente em evidência. Em prol da otimização dos recursos públicos ao combate ao vírus, por Medida Provisória o governo federal suspendeu prazos de pedidos a serem atendidos presencialmente ou por servidores e setores envolvidos com o assunto. Também impediu recursos diante de eventual negativa de pedido de informação que apresentem tal argumento.

Aqui não se discute a razoabilidade de medidas similares diante de crise tão aguda, nem a realocação de recursos. No entanto, chama a atenção que diante de centenas de canais de relacionamento e comunicação entre cidadão e governo sejam os direitos garantidos pela incômoda LAI aqueles diretamente afetados. No mais, o desenho prático da medida não restringia, mas efetivamente impedia qualquer acesso a informações de pastas cruciais do ponto de vista orçamentário – como Saúde e, a depender da interpretação do próprio governo, sem margem pra qualquer questionamento ou recurso, Ministério da Economia.

Comprovando a tese de que se confunde de quem é a propriedade dos dados custodiados pelo Estado e que ainda se questionam os motivos de acesso aos dados de prateleira, o ministro da Controladoria Geral da União (CGU) sugeriu em rede social que “se abandone a velha prática de usar a LAI para atacar governos”. Em defesa da transparência e da publicidade como regra, em 26 de março o ministro Alexandre de Moraes, do Superior Tribunal Federal (STF), concedeu liminar suspendendo os efeitos da norma.

No mais, para além dos efeitos práticos de tais tentativas, o problema central reside na sinalização dada a toda a Administração. Mostra altas cúpulas de governo ainda afeitas à opacidade, ao controle reduzido, à não justificação e publicização de seus gastos e decisões. Denota confusão entre público e privado e proteção dos detentores de poder da vez. Como se denunciou no Reino Unido, encoraja comportamentos obtusos como destruição de documentos, não formalização de decisões e uso de plataformas decisórias paralelas e não rastreáveis.

Ainda, indica às demais esferas federativas e, especialmente, ao Judiciário e ao Ministério Público – onde a implementação da LAI é ainda mais difícil e em que, salvo honrosas exceções como o Ministério Público Federal (MPF), não raramente se criam requisitos adicionais aos pedidos, passam-se informações incompletas ou simplesmente não há respostas –, que cabe ao Estado lutar contra as demandas que “atrapalham” seu bom funcionamento. Proteger e restringir, não o contrário. São sinais que induzem resistência e subvertem o mandamento constitucional.

É fato que boa parte dos problemas de implementação decorre de falta de capacitação e pouco tempo de vigência. No entanto, há pouco espaço para dúvidas. A LAI incomoda e o autoritarismo, resiliente como um vírus, reage vigorosamente

 

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

Felipe de Paula

É professor de direito da FGV-SP.