Direitos Humanos,

A defesa do Direito pela Literatura

A esfera jurídica precisa com urgência incorporar o conhecimento sobre a realidade brasileira que está presente em obras literárias

16dez2021 | Edição #53

Sem querer explorar sua eventualíssima vocação revolucionária, disruptiva, o Direito pode ser lido como solução cultural capturada por um tipo de ambição coletiva irrefreável que o concebe como uma fórmula viabilizadora da transposição da realidade imperfeita (a dimensão daquilo que é) para algum ponto o mais próximo possível de um ideal de felicidade, paz e harmonia (a dimensão do que deveria ser), ideal projetado a partir de um pacto ético em benefício não de uns poucos, de uma turma, uma casta — suas moralidades, seus sectarismos, suas casuísticas, suas falsas conciliações —, mas de todos, do amplo, na chave do que se costuma designar  como o bem de todos, o bem comum.

Nessa funcionalidade inevitável, um dos corolários mais expressivos é o que remete à busca por uma ordem e uma estabilidade que aplaquem os confrontos entre os integrantes das estruturas sociais geradoras das tensões de um país. A procura por constância se daria sob o entendimento de que ela, a constância (sobretudo quando sinaliza na direção da conquista de certeza e segurança), seria a condição primordial para o assentamento de qualquer projeto civilizatório.  

A ordem social de um país — a sensação de estabilidade social que sustenta o projeto civilizatório de um país — decorre de uma pluralidade de escolhas, ambições, retóricas, induções, mas também da maneira como a violência e a possibilidade de esperança são percebidas e vivenciadas por aqueles afetados pelas promessas de sobrevivência, de prosperidade, de satisfação, de futuro, dentro do pacto de construção de um Estado justo.

Nesse jogar a que se submetem tantos corpos e tantas vidas (em que se contempla a recusa do enfrentamento de problemáticas fundantes das sociedades marcadas pela colonialidade, como a brasileira, como observa Jaime Ginzburg em Literatura, violência e melancolia), desvela-se uma inércia, uma leitura-padrão, por meio da qual é produzido um argumento de ordem que, em larga medida, se vincula à estagnação das razões, sobretudo das ditas razões instrumentais (veja a respeito Ricardo Timm de Souza, Ética do escrever: Kafka, Derrida e a Literatura como crítica da violência), por meio das quais se cristalizam modos de não sentir, não sonhar, não pensar. 

Disso tudo resultam invenções que se apresentam como verdades absolutas, como no caso deste nosso Brasil: as de que se trata de um país pacífico, não violento, de que em seu território não existe racismo, não existe conflito de classes, não predomina uma desigualdade estarrecedora, de que se trata de um desdobramento normal, uma consequência natural, a obscena concentração de terras nas mãos de um reduzido número de famílias, de que, em algum momento mágico, uma chave será acionada e o Brasil, jurado de futuro, será, de uma vez por todas, ocupado de futuro, do próprio e encantado futuro, isso para não citar toda a mítica em torno das Forças Armadas, sua competência operacional, sua capacidade resolutória, sua autoridade moral etc. Invenções que são o minério aspergido no cimento, às vezes pouco homogêneo, do sufocante argumento da ordem e da sua manutenção.

O Direito, em sua vocação sistêmica, projeta limites; e a Literatura é olhar que se lança para além dos limites

No plano da linguagem que ocupa o núcleo dessa inércia está o Direito. Envolvido pelo jogo entre o que se afirmaria como o entendimento posto e o entendimento pressuposto — algo semelhante ao que, na teoria jurídica, é acolhido como Direito positivo e Direito natural, a cultura e a natureza —, sua presença incorrerá em ininterruptas tentativas de deslocar as manifestações do indesejado, do intolerado, para o campo do que seria desejado, tolerado. E a questão que se coloca (e aqui se revela a importância da Constituição Federal vigente como o referencial democrático e ético preponderante) é: do que exatamente se trata esse desejado ou esse tolerado?

Nesse escrutínio está um dos campos mais salientes de disputa dentro das sociedades, dentro das visões hegemonizadoras de uma sociedade. Uma disputa que, sob o sedutor pretexto do consenso possível, tende a ser vencida por aqueles que conseguem hegemonizar os modos de controle (econômico, financeiro, bélico, religioso etc.) e a consagrar um modo distorcido de tratamento de valores que deveriam corresponder às esperanças de todos, mas que, no momento em que se passa a analisar criticamente sua aplicação, não correspondem.

No plano geral da linguagem, e bem menos funcional e efetivo do que o Direito, também está a Arte — e, no espectro da arte, a Literatura —, aglutinando lentes mais sensíveis à cognição (e à interpelação epistemológica) das parcialidades e precariedades daquele pressuposto anteriormente referido — do conjunto de entendimentos que, na ânsia civilizatória, não surgem de maneira neutra e são, enfatize-se, resultados da prevalência (nem sempre explícita) de determinadas forças, interesses, conveniências, violências, perpetuadoras de disparidades, das desigualdades, assumidas como normais, naturais, justas — e do que é posto (tomando emprestada a tipologia proposta por Eros Roberto Grau em O Direito posto e o Direito pressuposto). 

Na Literatura está a centrifugação de percepções não admissíveis no plano político, no plano religioso. Em suas narrativas se expressam desconcertos que expõem as fissuras das projeções homogeneizadoras que precisam dar sustentação às ideias de que, no geral, tudo vai bem (tudo precisa ir bem) quando, na maioria das vezes e de maneiras não triviais, não vai.  

Não estão distantes essas duas linguagens, essas duas dimensões. Pelo contrário, há uma interdisciplinaridade (ou interseccionalidade, ou transdisciplinaridade) entre elas. O Direito, em sua vocação sistêmica, não absolutamente autopoiética, projeta limites; e a Literatura é o olhar (e o buscar sentir) que se lança para além dos limites daquela instrumentalidade. 

Em perspectiva pragmática, é muito difícil não reconhecer a prevalência política do Direito: o Direito tem, e exerce, uma presença dispositiva em relação às restrições dos exercícios dos poderes dispersos na sociedade, das violências, que a Literatura, no plano das ingerências estruturadoras do caminhar da sociedade, organizadoras das saturações sociais, jamais terá, jamais será apta a concretizar. A Literatura não tem utilidade imediata. 

Na Literatura está, entretanto, a possibilidade de exposição de verdades (verdades ficcionais) que carregam um potencial de alteridade, de encontro ético e sensibilização, impensável em relação aos preceitos (ao que está escrito nos dispositivos legais) e às normas (ao que pode ser interpretado a partir do que está escrito nos dispositivos) decorrentes do constituir jurídico, e que assume (na dinâmica política, heterônoma, que lhe é própria) um caráter dogmático não imune a críticas, a releituras, a desestabilizações, a atualizações. 

A Literatura como lente

Cresceram significativamente os estudos sobre as relações entre Literatura e Direito no Brasil nos últimos anos. Nesse novo fazer, considerando sempre o acúmulo teórico dos campos do Direito, da Filosofia, das Letras, da História, estariam os seguintes modos de abordagem (veja a respeito o artigo “Direito e Literatura: aproximações e perspectivas para se repensar o Direito”, de André Karam Trindade e Roberta Magalhães Gubert):  
1) Direito como Literatura, em que peças judiciais, como as sentenças e os votos em acórdãos, seriam analisadas como textos literários, sendo submetidas aos esquemas de análise e interpretação próprios do campo teórico literário;
2) Direito na Literatura, valendo-se das leituras e mediações de obras literárias para escrutinar, questionar, visibilizar, revelar a aplicabilidade, a compreensão, a assunção, do Direito (tanto o material quanto o processual) pela sociedade;
3) Direito da Literatura, como o Direito, em sua dimensão técnica, se estabelece no sentido da proteção da escrita, da produção literária, dos direitos autorais;
4) Direito à Literatura, como parte dos processos de emancipação cidadã, da cidadania (quanto a isso, impossível não indicar o célebre “O Direito à Literatura”, de Antonio Candido);
5) Direito contra a Literatura, quando, em caráter excepcional, a instrumentalidade do Direito é posta a serviço da censura de obras literárias.

Dentre essas variações — e privilegiando, em face das idiossincrasias brasileiras, a reflexão crítica acerca da maneira como os valores reafirmados pelo Direito são recepcionados pela sociedade —, destaca-se a escola referida como o Direito na Literatura ou o Direito pela lente da Literatura (em A Constituição, a Literatura e o Direito, Germano Schwartz sustenta a urgência da leitura do Direito constitucional pela lente da Literatura). O destaque se justifica porque, em muitos níveis, o Direito brasileiro é solução institucional programada para acontecer distanciada dos problemas que envolvem a concretização de uma sociedade menos reificada, menos dependente dos atalhos, das simplificações, menos insensibilizada, de uma sociedade mais justa.

No universo normativo-dogmático, esse “não atalhar” passa pelo enfrentamento dos valores democráticos e humanitários postos pela Constituição Federal — a norma que refunda o Estado, que institui e ao mesmo tempo limita os poderes, que legitima as demais leis e as autoridades, que, sendo um marco político, histórico, estabelece o lugar, a baliza, de onde não se poderá retroceder —, passa pelos fundamentos e objetivos nela inscritos, como o fundamento dignidade da pessoa humana e o objetivo erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais.

Por mais que os fascistas condenem o Estado democrático, não logram oferecer um substituto

Essa demarcação é essencial quando se recupera a desesperadora demora do Brasil em se desvencilhar de suas lógicas colonialistas, escravocratas, autoritárias, elitistas-periféricas e de manutenção de uma violência vertical institucionalizada constante, que — delineadas por todos os pressupostos históricos do que se originou como colônia extrativista — naturalizam as piores atrocidades: exclusões, repressões, eliminações de grupos e pessoas. 

Atrocidades apoiadas por governos que se sucedem e negligenciadas, por vezes recusadas, pelas estruturas da Justiça, que poderiam e deveriam contê-las, puni-las, mas não o fazem porque — dentro do velho jogo da tensão entre classes e da visão hegemonizadora dos que, privilegiados no último grau do imaginário colonialista, são menos de 1% da população — não querem ou porque — perdidos em sua massacrante rotina de prestação jurisdicional e pela ruidosa ausência de um debate público decente —, não enxergando a tragédia, não compreendem quanto suas presenças, suas autoridades ordenadoras, são motivadas pela clara intenção de manter sob o rótulo “isto está certo” o que está errado.

Em face disso, romances como S. Bernardo, de Graciliano Ramos, A festa, de Ivan Angelo, Não verás país nenhum, de Ignácio de Loyola Brandão, Cidade de Deus, de Paulo Lins, Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo, Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, e O voo da guará vermelha, de Maria Valéria Rezende, são oportunidades muito especiais, obras que expõem nossa ordem posta e a ordem pressuposta (de orientação escravocrata), da qual não conseguimos nos livrar. São obras que assumem como cenário o flagelo que é só uma das consequências de um país ainda dobrado pela moralidade dos que, desde 22 de abril de 1500, se pronunciaram sobre a invasão deste território apenas para sugar, parasitar, espoliar, destruir.

Diálogo

Não são poucas as obras acadêmicas produzidas no exterior que explicam esse nosso molde trágico, esse nosso tipo de colonialidade. Elas, no entanto, não cercam o protagonismo vitimado por nossa maneira de funcionar — de não funcionar. A leitura, a mediação e os debates em torno de um romance essencial como Um defeito de cor, talvez o romance brasileiro mais importante produzido neste século por autora ou autor brasileiro, para ilustrar mais objetivamente o que se busca salientar com este texto, expõem a mecânica estrutural que impede brasileiras e brasileiros, como presenças invasoras, diaspóricas (sejam decorrentes dos continentes africano, asiático, europeu) e originárias, de encontrar a si mesmos em um diálogo democrático — um diálogo que em algum momento dependerá da compreensão do compromisso democrático, e dialético, demarcado na Constituição vigente.

Quando se ouve falar que algum membro da magistratura, do Ministério Público, delegado de polícia, oficial das polícias militares, em seu círculo privado ou em espaço público, defendeu convictamente que bandido bom é bandido morto, que direitos humanos são apenas para humanos direitos, um grave sinal de atenção e perigo ascende no horizonte, debilitando ainda mais nossa ilusão civilizatória. 

A rotina e a sedução dos possíveis atalhos e simplificações da realidade afetam os que convivem com massacrantes rotinas de violência e de pretensa solução de violências. Em algum momento essas subjetividades cedem à receita da blindagem, da insensibilidade, da perda de empatia, do fluxo de não querer pensar. Isso é trágico, e o Direito, a aplicação do Direito, se afasta do referencial ético humanitário, democrático, que, mesmo estando inscrito no texto constitucional, precisa ser diuturnamente buscado, defendido, reafirmado: por mais que os novos fascistas se coloquem contra o projeto de construção de um Estado Democrático de Direito, sua moralidade não logra oferecer um modelo substituto que não se baseie na opressão do outro, na eliminação sumária do outro, como vem acontecendo por séculos em relação aos indígenas e, agora, de maneira mais despudorada.

Em um cenário de Direito fragilizado, um debate sobre narrativas ficcionais relevantes é necessário

Essa procura pelo estabelecimento, no lugar da ética (da finalidade de obtenção do bem comum, de uma democracia que valha para pessoas negras, indígenas, mulheres, do espectro lgbtqia+, deficientes, fragilizadas, subalternizadas), de moralidades do tipo primeiro eu, primeiro minha família, primeiro a minha liberdade (a que remete à perversa desconsideração do outro), primeiro a minha propriedade, não pode receber adesão das esferas garantidoras do Direito democraticamente posto, das intelectualidades que deveriam explicar a sociedade. 

Por isso, dentre outras urgências, há de se reconhecer toda validade à escrita de obras como A Constituição, a Literatura e o Direito, de Germano Schwartz, em que se sustenta ter a Literatura a aptidão de ajudar na tradução do jurídico para o real: na Literatura estaria a possibilidade de um caminho de comunicação entre os valores da Constituição e as pessoas que deles seriam destinatárias. 

Em um cenário de Direito fragilizado, ameaçado, no Brasil, desde o momento posterior à promulgação da Constituição democrática de 1988, mas especialmente nos anos recentes, a abertura (a ampliação) de um debate público em que se integrem narrativas ficcionais relevantes, como as apontadas anteriormente — por meio das quais seriam mais bem expostos os protagonismos e as tragédias que, invisibilizados, não são compreendidos pelos olhares insensibilizados de formuladores de políticas públicas, de gestores, de aplicadores da ordem essa que precisa ser democrática, integradora, restaurativa, amparadas na invenção que se chama Direito —, e em que se reafirme a ética não afetada pelas moralidades de ocasião é mais do que desejada, é necessária, é urgente.

Quem escreveu esse texto

Paulo Scott

Relançou o romance Voláteis pela Alfaguara em dezembro.

Matéria publicada na edição impressa #53 em outubro de 2021.