Ciências Sociais, Literatura infantojuvenil,

O ponto de vista dos animais

Fábula sobre a natureza provoca uma reflexão urgente: vai sobrar algum humano no mundo para contar histórias?

26ago2022

  
Ilustração de Joan Negrescolor

Ao ingressar na Real Academia Española, em 1998, a escritora catalã Ana María Matute discursou sobre o bosque: o lugar para onde gostava de escapar quando criança. Ali aprendeu que a escuridão resplandece e que os voos dos pássaros escrevem palavras antiquíssimas no ar, de onde brotam todos os livros do mundo. Segundo ela, no bosque estão sons totalmente desconhecidos dos humanos, e em seus cantos reside uma infinidade de histórias jamais escritas. Ainda assim, é possível reconhecer todas essas vozes e palavras, mesmo sem escutá-las, quando estamos diante do balanço das folhas ou perto das raízes profundas que buscam o coração do mundo.

A experiência remete à de Nina, personagem de A cidade dos animais, do autor e ilustrador catalão Joan Negrescolor. Do alto da torre, a menina enxerga uma selva inofensiva, seu lugar secreto, cujas trilhas e cheiros conhece bem. Ao transitar pelas páginas ultracoloridas, encontra plantas, amigos bichos e uma série de objetos perdidos, de fios a carros submersos. É que muito sobrou na cidade antigamente habitada pelos humanos, hoje ocupada pela natureza e pelos olhos de Nina, uma contadora de histórias recebida com entusiasmo pelos animais.

Nesta fábula sobre a natureza, os animais retratam nossa sociedade e, portanto, as relações distópicas do mundo contemporâneo. Trata-se de um livro imaginativo sobre as histórias que os macacos, as serpentes e os flamingos gostam de ouvir, mas também de uma crítica: com tamanha destruição, chegará o dia em que o bicho-homem irá sumir do mapa e as histórias serão contadas por outros animais? E que histórias contariam se estivéssemos dispostos a escutá-los?

Os animais retratam nossa sociedade e, portanto, as relações distópicas do mundo contemporâneo

Na figura da criança que navega pelo fenômeno do brincar telúrico, pulando de uma página a outra na companhia de simpáticos seres, Nina cria um outro mundo e desenrola uma narrativa nutrida de possibilidades e sonhos, repercutindo o que mais provém de si mesma: a paixão pelos livros e a capacidade de fabular. É dessa forma que se conecta com os bichos e os compreende como agentes que pensam e sentem, reforçando a relação simbiótica da menina com o mundo natural, uma vez que ela própria também é natureza. Para a única personagem humana, os animais não somente ouvem o que conta como têm preferências e interação. Eles olham, sorriem e se divertem com disponibilidade, sem oferecer perigo à sua imaginação.

Ao ocupar diferentes perspectivas e escalas, Nina cita aventuras espaciais, seres extraordinários, deuses, dragões, mitos e lendas — o que interessa aos animais não por acaso é o que muitas crianças também apreciam. A linguagem verbal é econômica, com textos em caixa-alta e frases curtas. As ilustrações feitas digitalmente, mas com a intenção de manter características dos desenhos manuais, explodem em cores, compondo até as margens das páginas em sobreposições que imprimem de modo bonito e vibrante. É interessante notar como os bichos olham para a menina, sempre acomodados e atentos à escuta. Só encaram o leitor quando o narrador observa que a história favorita deles é a de que eles próprios são protagonistas, revelando então o lado mais selvagem da cidade dos animais, onde a natureza abunda.

Interrupção

Para o filósofo também catalão Jorge Larrosa Bondía, a experiência que nos atravessa requer um gesto de interrupção. Isso só acontece quando paramos para pensar, olhar, escutar, sentir e bloquear qualquer automatismo da ação. É assim que se aprende a escutar os outros e a cultivar a arte do encontro. É o que faz Nina e sobre o que fala Ana María Matute.

O livro convida a um tipo de utopia: olhar a natureza não como objeto de curiosidade e domínio, mas lugar de pertencimento e cuidado. Oferece, portanto, uma possibilidade de vínculo emocional e cultural por meio da leitura estética de situações cotidianas e que precisam ser verbalizadas. Em um momento de crise ambiental, em que cresce o distanciamento das crianças em relação à natureza, o livro chega como uma experiência indireta capaz de sensibilizar o olhar para criar conexões, fazendo pontes necessárias para reflexões e construções de vivências amorosas com a terra.

Este texto foi realizado com o apoio do Itaú Social

Quem escreveu esse texto

Thais H. Caramico

É sócia-fundadora do Estúdio Voador, especialista em Livros e Literatura Infantil e Juvenil e idealizadora do projeto Biblioteca de Fora, onde apresenta sua coleção de livros sobre a natureza (para seres vivos de todas as idades).