Literatura infantojuvenil,

Homem-bicho-poeta

Primeiro volume de coleção de Itamar Assumpção para o público infantil é lançado com ilustrações do artista Dalton Paula

31maio2021 | Edição #46

A grandeza da arte vanguardista e afrofuturista do músico Itamar Assumpção (1949-2003), um dos maiores artistas independentes brasileiros, foi homenageada em alto estilo com a inauguração do Museu Itamar Assumpção — o MU.ITA, virtual, disponível em itamarassumpcao.com — em 20 de novembro de 2020, Dia da Consciência Negra, dia da morte de Zumbi dos Palmares. “Sou afro brasileiro puro” é uma das frases de sua canção “Cabelo duro”, do álbum Isso vai dar repercussão, de 2003. 

Sua pretitude, como dizia, foi afirmada em muitas de suas composições, atravessadas por inúmeras referências da cultura negra. Como se lê no texto “Afro brasileiro puro”, da equipe curatorial do museu, citando o cantor Tiganá Santana, “o Nego, além de Dito, é multiplamente traduzível”. Nego Dito, Pretobrás e Poeta-Não são alcunhas ou personagens encarnados por Itamar em suas composições, que contaram com importantes parcerias: Naná Vasconcelos, Alzira E. e, principalmente, a poeta Alice Ruiz.

Foi a ela que o artista paulista mostrou um de seus inúmeros cadernos, totalmente escrito, contendo uma narrativa sobre uma formiga, pedindo que ela extraísse dali “uma história redonda” destinada a crianças. Os cadernos manuscritos estão disponíveis no MU.ITA, e parte dos textos endereçados ao público infantil, sob a edição de Alice Ruiz e Isabel Malzoni, da Editora Caixote, passa a compor a coleção Itamar para Crianças, cujo primeiro título é Homem-bicho, bicho-homem (outros três livros estão a caminho). 

O livro agrega, além da parceira Alice Ruiz, outros admiradores de Itamar, como o compositor Chico César, que assina o texto da contracapa, e Dalton Paula, premiado artista visual e educador, que também inaugurou a primeira exposição do MU.ITA com dois belíssimos retratos — um de Itamar (sem os óculos!) e outro de Serena (1977-2016), filha do músico. Dalton conta que recebeu com muita honra e alegria o convite para ilustrar os textos de Itamar, entendendo-o “como um chamado da ancestralidade”. Em suas obras, Dalton investiga as influências da diáspora negra na história brasileira, retratando personalidades como Zeferina e João de Deus Nascimento, lideranças das insurreições negras na Bahia do século 19.

Encontro entre genialidades

Na capa do livro, um estiloso gato usa o mesmo modelo de óculos escuros que acompanhava Itamar na maioria de suas apresentações, o que é possível conferir observando a foto ao lado da biografia do artista, nas últimas páginas. O acessório reaparece, ainda, em outros personagens, todos bichos, ao longo do livro: o pavão, “rei da pose”, além dos óculos, usa uma corrente dourada com um pingente de diamante. O ambíguo antropoformismo sugerido no título é explorado nas ilustrações, criando, algumas vezes, um contraponto com o texto. Ao lado dos versos “Como um e um são dois…/ Não tem chifre o peixe-boi”, por exemplo, temos um peixe-boi em pé, usando um chapéu estilo caubói, com chifres.

As poucas figuras humanas que integram as ilustrações são negras e conservam características próprias dos retratos criados por Dalton: a pele contém manchas em vários tons de marrom e o nariz é largamente delineado. A junção das poéticas de Itamar e Dalton resulta em valorosa experiência estética, um encontro entre genialidades que desloca o olhar do estereótipo pela reinvenção artística da linguagem.

Trava-línguas

Em ritmo de parlenda ou trava-línguas, o texto poético é musical e bem-humorado: 

Como dois e dois são quatro…
Chupa-cabra é o carrapato. 

Considera a inteligência do leitor infantil, ao romper com a estrutura repetitiva e convocá-lo à participação: 

Oito e oito, dezesseis…
Agora é a vez de vocês.  
Nove e nove são dezoito…
Que cor mesmo é a cor do boto?

Além das perguntas ao leitor, a metalinguagem também aparece, chamando a atenção para a própria estrutura poética, com boas doses de ironia: 

Sapo rima com lago, 
Mas o boi não é bisão. 
O gato rima com o rato,
Mas não são amigos, não.

Não poderiam faltar provocações filosóficas na inquieta poética de Itamar: 

Existem homens malvados, que matam só por prazer. 
Bem diferente dos bichos
Porque bichos matam pra comer
ou só pra se defender.

E, como se trata de uma poética fluida e brincalhona, os versos finais não fecham, mas sim abrem para uma grande roda-picadeiro onde cabem homem, bicho, fauna, flora e rios que correm.

Este texto foi feito com o apoio do Itaú Social

Quem escreveu esse texto

Cristiane Tavares

É crítica literária, coordena a pós-graduação Livros, Crianças e Jovens: teoria, mediação e crítica no Instituto Vera Cruz (SP).

 

Matéria publicada na edição impressa #46 em abril de 2021.