Literatura em língua francesa,

Quilombos cosmopoéticos

Filósofo propõe novo modelo de ação a partir da ideia de fuga da escravidão e da apreensão do mundo como totalidade viva

01fev2021

Enquanto me preparo mentalmente para escrever esta resenha, passo o café e escuto uma coleção de cantos de pretos velhos. Não penso muito quando os coloco para tocar. Apenas reconheço, com os olhos cerrados e a cabeça longe, às vezes transportada para dentro de algum dos infernos móveis chamados de navios negreiros, o ambiente acolhedor, de possível esperança que se forma aqui em casa quando as vozes e os instrumentos de percussão tocam as paredes do cômodo onde fica o aparelho de som, em brevíssimo contraponto ao mal disfarçado continuum da escravidão que é a experiência da maior parte da população negra no mundo inteiro hoje. 

Os pretos velhos e as pretas velhas, que certa historiografia nem um pouco desinteressada se acostumou a definir como símbolos da passividade, habitam o tempo agora, pertencem a todos os tempos. Imagino a pletora de imprecações, maldições, pragas e silentes risos zombeteiros que se escondiam sob aqueles rostos tristes e, por alguns breves instantes, o ritmo estabelece uma forte liga entre nós. 

O disco chega à última faixa ao mesmo tempo que eu termino o desjejum. Abro o livro de Dénètem Touam Bona numa página qualquer, e lá está o trecho de que eu já havia gostado tanto na primeira leitura: “Na origem, todo ritmo é um ritmo de corrida: o martelar dos pés sobre o chão, o martelar do coração dentro do peito, o martelar das mãos sobre o couro estendido. É antes de tudo por meio do ritmo que o nègre [preto velho] traça uma linha de fuga. Propulsor de sonhos, o fraseado rítmico opera distorções nos próprios corpos e no espaço-tempo. Durante o transe ritual, o possuído é o cavalo das divindades. Em terras submetidas à escravidão, esse teatro do invisível não pode deixar de ser subversivo: no decorrer da cerimônia, a condição de escravo fica suspensa, é negada, derrubada, abolida”. A prosa elegante desse escritor de quem só em 2020 eu tive a chance de me aproximar como leitor é atraente demais para que não a acompanhemos até o final do parágrafo: “Ao atravessar o ciclo das metamorfoses místicas, o nègre passa da escravidão à epifania dos deuses e deusas: ‘O rosto se transforma: o corpo inteiro se torna um simulacro da divindade’. E o que uma divindade poderia temer?”.

Sim à vida

No texto que abre o livro, intitulado “Prelúdio”, Touam Bona descreve a “poesia como celebração da terra, celebração do céu, celebração do cosmos”, um “grande Sim à vida” que “nos obriga a dizer Não”, a “dar testemunho do intolerável, do imundo, da destruição do mundo: quer se trate da sexta extinção em massa das espécies vivas ou da sinistra agonia do direito de sítio”. O autor nos conta, com ênfase raramente encontrável nos e nas poetas e intelectuais que têm atuado neste Brasil contemporâneo da emergência dos fascismos e da naturalização do racismo, que, para “além de sua dimensão crítica”, os ensaios reunidos em Cosmopoéticas do refúgio “buscam reabilitar as potências do sonho e da poesia” — sonho e poesia, para ele, constituiriam uma “inteligência do sensível que retesa o arco-íris do possível”.

Se tais palavras já destoam do que tem produzido e publicado a maioria do pessoal que tem na base de seu pensamento as vertentes des- ou decoloniais, o que dizer de afirmações que não só questionam as estruturas do edifício logocêntrico que ainda hoje predomina nos ambientes acadêmicos, em praticamente todos os quadrantes do mundo, como também preconizam a ideia da experiência poética enquanto modo de “apreensão do mundo como totalidade viva”, como “intuição de que todos os elementos que nos cercam, nos atravessam e nos compõem — o vegetal, a água, o ar, as ondas magnéticas — se correspondem, se entrelaçam e formam um único e mesmo cosmos”? É a essas hipóteses de reimaginação do mundo e da vida que Bona dá o nome de “cosmopoética”. 

Dénètem explica: “Cosmopoética não é nem um fetiche nem uma marca registrada, apenas um termo, um modo de apontar para uma outra relação com o mundo que privilegie a escuta” — o sentido das ressonâncias e das correspondências, e não a visão. O autor mira “o privilégio excessivo concedido pelo Ocidente à theoria, levado ao paroxismo na era das imagens de síntese e da ‘visão aumentada’, que nos conduz a perceber nosso ‘ambiente’ como um simples cenário”, passível de “ser modificado à vontade como nas cenografias dos jogos virtuais”.

E é daí que vem o que considero o melhor das propostas de Bona: a elaboração de um projeto de “resistências furtivas, nada frontais” aos “dispositivos de controle” a serviço do capitalismo e de todas as suas linhas auxiliares, como o racismo antinegros e anti-indígenas, o sexismo, a LGBTQI+fobia e outras. Tomando a marronagem (definida por ele como “o fenômeno geral da fuga de escravos”) como modelo para um método de ação, com o argumento inquestionável de que, em tempos como o atual, atacar “em terreno aberto é se oferecer como carne de canhão aos múltiplos poderes que tendem a nos sujeitar, expor-se a ser capturado, desacreditado”, ele propõe a via da resistência “em modo menor”. Sua tese é bastante simples: se a marronagem é “menos uma forma de conquista do que de subtração ao poder”, as táticas furtivas serão “táticas de des-captura”, uma vez que, “a cada tentativa de captura, opõem o vazio”. 

“Penso que nosso trabalho é fazer com que o Antropoceno seja o mais curto/fino possível, e cultivar, uns com os outros e em todos os sentidos imagináveis, épocas por vir, capazes de constituir refúgios”, lê-se na epígrafe da filósofa estadunidense Donna Haraway, que Dénètem faz conversar ao longo do livro com outros pensadores de agora, como, entre outros, Davi Kopenawa e Sony Labou Tansi, poeta kongo. Mas que ninguém se iluda. Resistir, nos termos desse filósofo “afropeu” (nascido na França, o autor é filho de pais oriundos da República Centro-Africana), é tarefa difícil. 

Será preciso recuperar, em nós, a capacidade de estabelecer conexões “com o conjunto de tudo que vibra”, à semelhança do que sempre fizeram os “mestres do invisível” — “pajés, ngangas, mães de santo, bruxas neopagãs”. A questão é se teremos suficientes imaginação e coragem para criar e recriar novas possíveis linhas de fuga, todo o tempo, bem na fuça dos cães de caça reais ou metafóricos e dos múltiplos aparelhos de controle que vigiam as fronteiras — inclusive as do contexto virtual — do “mundo administrado”.

Este texto foi feito com o apoio da Embaixada da França.

Quem escreveu esse texto

Ricardo Aleixo

É poeta, autor de Sonhei com o anjo da guarda o resto da noitePesado demais para a ventania: antologia poética, ambos pela Todavia, e Diário da encruza (Segundo Selo).