História,

A escravidão em primeira pessoa

Escritos de Frederick Douglass possibilitam ao leitor contemporâneo entender o funcionamento das sociedades escravocratas

09set2021 | Edição #50

Em uma passagem de The Wire, série de tv criada por David Simon, um de seus personagens, Brother Mouzone, repreende um de seus subalternos por causa das publicações que deveriam ser adquiridas. Ao exigir que a edição da Harper’s fosse comprada no dia seguinte, Mouzone provoca: “Você sabe qual é a ideia mais perigosa nos Estados Unidos, não sabe? Um preto com o cartão da biblioteca”. O afro-americano Mouzone, então, gargalha enquanto folheia outra revista.

A passagem pode soar fortuita na série, mas é possível identificar a alusão a Frederick Douglass, um dos principais abolicionistas dos Estados Unidos. Nascido em 1818 como Frederick Augustus Bailey, viveu como escravo por vinte anos. Conseguiu fugir para a Filadélfia e depois para Nova York, quando alterou seu nome. Em sua autobiografia de 1845, publicada recentemente no Brasil pela Penguin Companhia e pela Vestígio, Douglass revela o que se pensava sobre a educação para os escravizados: “O preto nada deve saber que não servir a seu senhor e fazer o que lhe mandam. A educação estragaria o melhor preto do mundo. Então, se você ensinar esse preto (falava de mim) a ler, nada poderá detê-lo. Isso o tornaria eternamente inútil para a escravidão”.

O relato de Narrativa da vida de Frederick Douglass impressiona pela sofisticação com a qual o seu autor resgata sua trajetória de vida. Douglass detalha os abusos a que ele e outras pessoas eram submetidos, em um processo de desumanização capaz de fazê-lo não desenvolver nenhum tipo de afeto pelos familiares ou pelo lugar onde tinha nascido. Quanto mais violentas são as práticas contra o povo negro, mais elegante e altivo é o texto. Segundo a autobiografia, homens e mulheres passavam fome, eram privados de sono e, se ousassem reclamar, eram tratados a chibatadas. Alguns contemporâneos de Douglass desconfiavam da veracidade desses relatos. Desacreditar o autor era o recurso que defensores da escravidão utilizavam para mitigar o impacto do texto de Douglass, que entendeu o significado da sua condição e conseguiu escapar do destino que lhe tinha sido traçado. Mais do que o estilo altissonante, é a luta pela liberdade que torna o texto um documento poderoso.

Para isso, Douglass compreendeu que era fundamental saber ler e escrever. Para tanto, converteu alguns meninos brancos em professores e observou como os carpinteiros escreviam o nome do navio em um pedaço de madeira. “Durante essa época, meu caderno eram a cerca, a parede de tijolos e o piso. Minha caneta e tinta eram um pedaço de gesso. Com isso, aprendi a maior parte da escrita.”

Marcas

Douglass registra como as marcas da escravidão são tão ou mais permanentes do que as cicatrizes dos castigos físicos. Entre os escravizados, não era incomum o entendimento de que “boca fechada é sinal de boa cabeça”. O texto resgata a forma como toda uma imaginação era consumida pelo ecossistema da escravidão. Homens que se regozijavam com as práticas de vigilância e punição; mulheres que mudavam de postura ao ser apresentadas ao poder sem limites; e havia ainda quem buscasse justificativa na religião para defender a perversidade escravagista.

Quanto mais violentas são as práticas contra o povo negro, mais elegante e altivo é o texto de Douglass

A interpretação sinistra da palavra de Deus merece destaque. Vivendo sob o mando de Thomas Auld, Douglass comenta que teve expectativa, logo frustrada, de que a conversão de Auld pudesse mudar os hábitos do senhor de escravos: “Se teve algum efeito sobre seu caráter, foi o de fazê-lo mais cruel e odioso em seus modos”.

Se, por um lado, os trechos que evidenciam a violência a que negros eram submetidos fazem o leitor ficar indignado, por outro, a capacidade de Douglass de manter-se consciente da sua busca pela liberdade é a prova de como os bons princípios não podem morrer. Ao se preparar para se tornar livre, forjando-se como educador de si mesmo, Douglass deixou um legado que está presente nas manifestações contra a violência racial.

A propósito, no prefácio de Autobiografia de um escravo, o professor Silvio Almeida salienta a dimensão histórica da contribuição de Douglass: “Não é um personagem cuja relevância se reduz à história dos Estados Unidos”. Para Almeida, os escritos de Douglass possibilitam ao leitor contemporâneo assistir a como funcionavam as sociedades escravocratas. Aqui, vale a pena mencionar a perspectiva constitucional que as ideias de Douglass oferecem. O abolicionista enfrentava não apenas os sulistas defensores da escravidão. Ele discordava até mesmo dos defensores da abolição, como Abraham Lincoln e Lloyd Garrison. Escreve Almeida: “[Ele] assume a posição de que a escravidão não é apenas um problema político ou ético, mas um problema jurídico-constitucional”. Afinal, se a Declaração da Independência garante a liberdade humana, estavam errados aqueles que não viam a escravidão como uma questão constitucional. A edição da Vestígio traz ainda um cuidadoso material de apoio, como as indicações de leitura, que incluem A cabana do Pai Tomás, de Harriet Beecher Stowe; e a ficção The Underground Railroad: os caminhos para a liberdade, de Colson Whitehead.

Já na introdução da edição da Penguin, assinada por Ira Dworkin, nota-se o alcance das ideias de Douglass. A citação que abre o ensaio traz um trecho da canção do grupo Fugees: “Um apetite para escrever, como Frederick Douglass com uma mão escrava”. Como os rappers de hoje, Douglass soube transformar o lamento em palavras que incendeiam a imaginação dos defensores da justiça, da igualdade de oportunidades e de uma educação capaz de transformar.

Quem escreveu esse texto

Fábio Silvestre Cardoso

Jornalista, é autor de Capanema: a história do ministro da Educação que atraiu intelectuais, tentou controlar o poder e sobreviveu à Era Vargas (Record).

Matéria publicada na edição impressa #50 em agosto de 2021.