Crônica da pandemia,

Shakespeare em meio à peste

Como o dramaturgo inglês representava em suas peças as pragas e as epidemias que assolaram a Inglaterra

20maio2020 | Edição #34 jun.2020

O inferno está vazio e todos os demônios estão aqui. Quem o diz é William Shakespeare, pela voz de Ariel, na peça A tempestade, supostamente a última que escreveu. Ariel era então um espírito sábio, não tinha ainda virado sabão em pó.

A história de Romeu e Julieta, a mais romântica das tragédias, nos é também a mais familiar. As direções de Franco Zeffirelli no cinema (1968) e a de Antunes Filho no Teatro Anchieta (1984), para quem teve o privilégio de assistir, são memoráveis. Uma deslumbrante Giulia Gam, aos quinze anos, foi mais Giulieta do que a própria Julieta.

Quem se lembra, entretanto, de que a trágica morte dos amantes foi causada pela epidemia que então grassava na Itália? O acaso está presente, para o bem e para o mal.  Toda a peça se estrutura em reviravoltas e acidentes, destaca Kate Maltby, crítica do jornal The Guardian.

Romeu foi parar por engano na festa em que se apaixonou por Julieta. Julieta, adormecida em seu túmulo, tomou a poção que a faria parecer morta, num estratagema para superar o ódio entre os Capuleto e os Montecchio. Mas é preciso avisar Romeu.

Havia peste em Verona, Frei João estava em quarentena. Na peça, os corpos começaram a ser enterrados apenas em lençóis ou mortalhas, pela alta do preço dos caixões. O fato de que os mortos eram envolvidos em lençóis brancos, afirma um estudioso, pode até ter influenciado a cor dos nossos fantasmas.

Frei João tenta ir a Mântua para contar a Romeu que a morte de Julieta é apenas fingida, mas fracassa em sua missão. Ao voltar, relata a Frei Lourenço que, por causa da epidemia, não pôde entregar a carta a Romeu:

— Fui procurar um frade de nossa ordem de pés descalços, que visita os doentes, para ir comigo a Mântua, mas os guardas da cidade, pensando que tivéssemos estado numa casa dominada pela pestilência, logo fecharam as portas, não deixando que saíssemos. Desta arte minha pressa de ir a Mântua ficou parada.

Shakespeare atravessou períodos de epidemia, muitos dos quais obrigaram ao fechamento dos teatros

A crítica de teatro Bárbara Heliodora destaca o papel do imprevisto na obra de Shakespeare: “Quanto ao acaso, no entanto, é preciso lembrar como o atraso do frade com a carta, por causa da peste, seria plausível para a plateia elisabetana, já que a peste continuava endêmica e fazia ainda pouco (entre 1592 e 1594) mantivera os teatros de Londres fechados por quase dois anos”.

Shakespeare nasceu em 26 de abril de 1564, sendo batizado Guglielmus. Poucos meses depois, no mesmo registro paroquial, o clérigo anotou: “Hic incipit pestis”, ou seja, aqui começa a peste. Toda a família de Shakespeare escapou e não chegou a ser atingida.
Ao longo da sua existência, o dramaturgo atravessou diversos períodos de epidemia, muitos dos quais obrigaram ao fechamento dos teatros. Eram períodos de distanciamento social, ao lado de outras medidas inúteis, como o sacrifício de gatos e cachorros, queima de ervas, ou uso de poções fabricadas por charlatães, de grande aceitação pelos incautos.

Entre 1603 e 1604, a peste impediu a coroação do novo rei James 1º, que sucedia Elizabeth. Um em cada cinco londrinos sucumbia à doença. Enquanto isso, Shakespeare continuava escrevendo — possivelmente Rei Lear —, como analisa James Shapiro no brilhante best-seller The Year of Lear: Shakespeare in 1606. Historiadores estimam que, entre 1606 e 1610, os teatros de Londres não tenham ficado abertos por mais de nove meses.

À época, já se percebia que a taxa de infecção aumentava nos locais mais populosos; assim, quem podia ia para o campo. As paróquias recenseavam semanalmente os casos da doença, nos chamados “Bills of Mortality”. Os serviços religiosos, porém, continuavam, pois se acreditava que durante as orações nada de mau podia acontecer. Assim que se passava de trinta mortes, eram proibidos concursos, reuniões, festas e também o teatro.

O transporte de corpos e os enterros só podiam ocorrer no período noturno, mas a noite era muito curta para todos os funerais, que prosseguiam muitas vezes pelas manhãs. Logo surgiram as covas coletivas, e as lendas londrinas falam em poços onde depois eram encontrados centenas de esqueletos.

Tucídides relata uma peste que atingiu Atenas em 430 a.C., com febre alta repentina, falta de fôlego e outros sintomas, mas registra que a pior parte era o desespero das pessoas diante do medo, e o horror de se ver seres humanos morrendo como carneiros.

Peste como metáfora

Nenhuma das peças de Shakespeare trata diretamente da peste, o mais próximo é o incidente que acarreta a morte dos amantes de Verona. Muitos de seus contemporâneos abordaram a doença e suas consequências trágicas, mas o dramaturgo usa a peste, em geral, apenas como metáfora ou força de expressão.

Em ‘Macbeth’, a Inglaterra não está sob o drama da doença, mas sob o jugo de um rei tirano

Em Macbeth, a Inglaterra não está sob o drama da doença, mas sob o jugo de um rei tirano que perseguia os inimigos e traía os amigos. Segundo escreveu para a New Yorker Stephen Greenblatt, professor de Harvard, em vez da doença, Shakespeare focalizou “a praga de ser governado por um líder mentiroso, moralmente falido, incompetente, imerso em sangue e, acima de tudo, autodestrutivo”. O Estado tende a restringir as liberdades e a querer mais poder em épocas de pandemia, analisa Kate Maltby. Nos antigos contos gregos, as pestes se seguem às más lideranças, destaca Joel Christensen, da Brandeis University.

Mais uma lição a tirar de Shakespeare. Não basta acompanhar as aterradoras estatísticas. Enquanto seres humanos morrem, temos que ficar de olho nos governantes, e ver como lidam com a perda de milhares de vidas. E o que fazem para amparar os necessitados e prevenir futuras tragédias. Temos também que lutar para que não consigam usar a situação como pretexto para buscar mais poder, ou vantagens políticas, e nos oprimir.

O inferno está vazio e todos os demônios estão aqui. Vamos lembrar aos homens, como fez Marco Antônio na oração  fúnebre de Júlio César, que a eles sobrevive o mal que fazem.

Quem escreveu esse texto

Eduardo Muylaert

Advogado e fotógrafo, está lançando Direito no cotidiano: guia de sobrevivência na selva das leis (Contexto). 

Matéria publicada na edição impressa #34 jun.2020 em maio de 2020.